sexta-feira, 13 de março de 2009

EZRA POUND E A CHINA




Ao longo de sua vida conturbada, o genial poeta americano Ezra Pound (1885-1972) sempre se interessou pela literatura e filosofia chinesas, traduzindo antigos poemas clássicos e estudando o pensamento de Confúcio, conforme mostrou Noel Stock em “The Life of Ezra Pound”.


Um marco decisivo na trajetória intelectual do poeta foi o encontro com a viúva de Ernest Fenollosa, em 1913, que viu nele a pessoa mais indicada para assumir o legado desse orientalista, que chegou a ser, durante um certo tempo, Comissário Imperial das Artes, em Tóquio. Há um trabalho de Fenollosa, intitulado ”Os Caracteres da Escrita Chinesa como Instrumento para a Poesia” (consta do livro “Ideograma”, organizado por Haroldo de Campos, Ed. Cultrix, 1977), que Pound tinha na mais alta conta, referindo-se a ele como um trabalho iluminador, e “um dos ensaios mais importantes do nosso tempo”, “básico para a estética”. No material deixado por Fenollosa, havia esboços de traduções de poesia chinesa, em cima das quais Pound trabalhou, daí se originando seu livro “Cathay” (como a China era chamada na Idade Média), puiblicado em 1915, dedicado inteiramente a tais traduções, ou recriações. “Cathay” é uma requintada coletânea de 18 poemas, 10 dos quais são de autoria de Rihaku (o nome japonês de Li Po, ou Li Bai, o mais famoso poeta chinês no Ocidente). O livro trata de temas relativos à guerra (o retorno dos guerreiros, pesarosos e exaustos; a dura vida da campanha; a terra por ela devastada), à mulher (saudosa do amado; esquecida pelo marido bêbado; enquanto jovem e bela, atraindo a atenção dos transeuntes), à amizade entre os homens (lembranças dos momentos em que estiveram juntos, alegres, ou sobre sua separação), as memórias da cidade de Choan, à solidão do homem etc.


São poemas de caráter, muitas vezes, descritivo ou narrativo, em que a beleza dos versos repousa frequentemente na exploração dos aspectos visuais da situação. Por exemplo, em “Sennin Poem by Kakuhaku”:


“The red and green kingfishers
flash between the orchids and clover,
One bird casts its gleam on another.”

(Os martins-pescadores rubros e verdes/ reluzem entre os trevos e as orquídeas,/ Um pássaro lança seu brilho sobre o outro.)

Noutro poema, consta a beleza plástica deste verso: “The Dai horse neighs against the bleak wind of Etsu” ( O cavalo Dai relincha contra o vento gélido de Etsu).


A descrição de fenômenos da natureza pode estar associada a sensações humanas:


“By the North Gate, the wind blows full of sand,
Lonely from the beginning of time until now!”.

(Na Porta Norte, o vento sopra, arenoso,/ Solitário desde o começo dos tempos!).

Esses versos fazem parte do poema “Lament of the Frontier Guard”, que transmite toda a sensação de solidão e vulnerabilidade dos guardiães da fronteira (“alimento dos tigres”) na luta contra os “bárbaros”.


O aspecto narrativo pode ser exemplificado pelo poema “Song of the Bowmen of Shu”, quando trata do retorno dos guerreiros:


“When we set out, the willows were drooping with spring.
We come back in the snow,
We go slowly, we are hungry and thirsty,
Our mind is full of sorrow, who will know our grief?”

(Quando partimos, os salgueiros descaíam com a primavera./ Voltamos sobre neve,/ Avançamos lentamente, famintos e sedentos,/ A mente cheia de tristeza, quem saberá da nossa dor?)

O antológico “The River-Merchant’s Wife: a Letter” baseia-se, todo ele, na narração. Quem fala é a esposa do mercador do rio. Ele está há cinco meses longe de casa. A esposa rememora os antecedentes da sua relação com o marido, desde a infância:


“And we went on living in the village of Chokan:
Two small people, without dislike or suspicion”.

(E continuávamos a viver na aldeia de Chokan:/ Dois pequeninos, sem desagrado ou suspeita).

Nesses versos narrativo-descritivos podem ocorrer associações mais abstratas, em que o poeta “vê” mais do que “ouve” a partitura do canto dos rouxinóis:


“And (I) heard the five-score nightingales aimlessly singing”

(E ouvi os rouxinóis de partitura cantando a esmo).

Ou então observações que cativam pelo inusitado:
“The Emperor in his jewelled car goes out to inspect his flowers”

( O Imperador, em seu carro adornado com jóias, sai para inspecionar as flores).

Ressalte-se também o coloquialismo adotado por Pound em algumas passagens (assim como a reflexão do poema sobre a impossibilidade da comunicação):


“The birds flutter to rest in my tree,
and I think I have heard them saying,
‘It is not that there are no other men
But we like this fellow the best,
But however we long to speak
He can not know of our sorrow’.”

(Os pássaros esvoaçam, pousando na minha árvore,/ e acho que os ouço dizer:/ “Não é que não existam outros/ Mas gostamos mais deste camarada./ Porém, por mais que desejemos falar/ Ele não pode saber da nossa tristeza”).

Pound também se interessou muito por Confúcio, ou Kung Fu-tze (551-479 a. C.), salientando a atualidade de suas máximas éticas e políticas para o mundo moderno, como aquelas que enfatizam a necessidade do homem primeiro voltar-se para si mesmo, adotando uma conduta correta, antes de voltar-se para os outros, visando mudar o mundo.


Dentre as muitas máximas de Confúcio, presentes nos “ Cantos”, cita esta: “The archer who misses the bullseye turns and seeks the cause of his failure in himself” (O arqueiro que erra o centro do alvo volta-se para procurar a causa de sua falha em si mesmo).


Já em 1928 publicou sua tradução do “Ta Hio”, a partir de outras traduções, disponíveis. Como seu conhecimento da língua chinesa era precário, traduz, ou recria, a partir dos trabalhos de eruditos (especialmente James Legge), confrontando-os com os ideogramas do texto original, e buscando transmitir toda a sua carga de expressão visual, pela qual era fascinado. Em 1937 publica um digesto dos “Analectos” e em 1950 sua tradução integral.


1938 é o ano de um longo ensaio sobre a ética de Mêncio (372-289 a.C.) (Pound, aliás, considerava o “Livro de Mêncio” como o “livro mais moderno do mundo”).


Em 1945, publica outra tradução de Confúcio (“The Unwobbling Pivot”). Sobre o filósofo chinês, afirmou uma vez que “Kung é para a China o que a água é para os peixes”.


Em 1954, Pound lança sua tradução da Antologia Clássica, 305 odes, compiladas por Confúcio, da mais antiga poesia popular chinesa. Deve-se salientar, também, conforme o biógrafo Noel Stock, a presença do elemento confuciano na obra à qual Pound dedicou toda a sua vida -- “Os Cantos”, desde o Canto 13, inteiramente dedicado ao filósofo, em diálogo com alguns discípulos, até o Canto 98. No Canto 13, há essa passagem notável, quando Kung afirma:
“If a man have not order within him
He can not spread order about him;
And if a man have not order within him
His family will not act with due order;
And if the prince have not order within him
He can not put order in his dominions”.
(Se um homem não tiver a ordem dentro de si/ Não poderá difundir a ordem ao seu redor;/ E se um homem não tiver a ordem dentro de si/ Sua família não agirá com a devida ordem;/ E se o príncipe não tiver a ordem dentro de si/ Não poderá pôr ordem em seus domínios.)
Também no Canto 13, Confúcio faz esse elogio da postura equilibrada, de centro, para que o homem não incorra nos excessos do radicalismo:


“Anyone can run to excesses,
It is easy to shoot past the mark,
It is hard to stand firm in the middle”.
(Qualquer um pode partir para os excessos,/ É fácil errar o alvo,/ Difícil é situar-se no centro.)


Ao longo dos “Cantos” ocorrem muitas citações dos “Analectos”, conforme a tradução do próprio Pound, além de inúmeras outras referências chinesas, inclusive à história da China (Cantos 53 a 61), verificando-se mesmo, aqui e acolá, a presença gráfica dos próprios ideogramas.










LINGUAGEM CHULA NA "DIVINA COMÉDIA"/ "INFERNO"



A “Divina Comédia”, para quem não a leu ainda (e mesmo para quem a leu, nas traduções mais antigas) parece ser uma obra cujos temas, teológicos e filosóficos, são desenvolvidos numa linguagem sempre refinada e decorosa. Nada mais falso, se considerarmos a linguagem efetivamente empregada por Dante (cf. as traduções de Vasco Graça Moura e Jorge Wanderley-- esta só do “Inferno” -- ou de Allen Mandelbaum para o inglês). O poema, embora trate desses temas, e de outros também, adota uma linguagem que se diferencia em função do assunto em questão, linguagem essa que nem sempre é elevada, refletindo desse modo a alma popular, italiana ou universal.
A linguagem que Dante-autor utiliza para expressar as impressões da viagem do Dante-personagem pelos mundos dos mortos corresponde a esses mundos. Assim enquanto ele usará uma linguagem mais elevada no Paraíso poderá usar uma mais vulgar, ou mesmo chula, no Inferno. E dentro do próprio “Inferno” haverá também variação na maneira de se expressar como se depreende da comparação do Canto II, ou do Canto V, com a dos Cantos subseqüentes, que abordam cenas grotescas, trágicas, cômicas ou até mesmo repugnantes. A essa diversidade de situações corresponderão diferentes linguagens, pois forma e fundo estão intimamente relacionados nas obras literárias.
No Canto II, no Céu, a “gentil Senhora” (Nossa Senhora) encarrega Luzia (a santa padroeira da visão) de auxiliar o seu devoto. Ela então vai até onde estava Beatriz, sentada ao lado de Raquel (a amada de Jacob, irmã de Lia, conforme a Bíblia) -- símbolo da vida contemplativa -- pedindo-lhe para ir encontrar-se com Virgílio, no Limbo, e mandá-lo socorrer Dante, que se extraviou na selva oscura da vida pecaminosa, impedido pelas três feras de avançar no caminho de sua ascensão espiritual.
Também no Canto V, sobre os infelizes amantes Paolo e Francesca, condenados ao círculo dos luxuriosos, a linguagem é elevada e delicada.
Dante usa intencionalmente linguagem que mais convém ao contexto em que se situa. No Canto XXXII, ele afirma que gostaria de ter “rimas ásperas, roufenhas” (rime aspre e chiocce- v.1) para descrever uma certa situação no Inferno, o que é revelador dessa busca intencional da forma poética mais adequada ao seu objeto. Por isso, nunca se faz menção ao nome de Deus no Inferno. Os personagens usam circunlóquios para nomeá-lo.
Dante não tem falsos pudores, ou constrangimentos verbais, em seu modo de expressão. É direto e vigoroso. No Canto XX, dos feiticeiros e advinhos, o castigo destes,
pela “lei do contrapasso” (a correspondência da punição recebida com o pecado cometido), é, ironicamente, ter a cabeça voltada para trás, de modo que não podem agora nem ver o que está à sua frente, só o que está atrás. Dante explora visualmente tal imagem insólita, dirigindo-se ao leitor com familiaridade (aliás, esta é outra característica formal do poema): “como eu podia ter o rosto enxuto,/ quando essa nossa imagem vi de perto/ tão torta, que o pranto de seus olhos/ as nádegas banhava pela fenda” (com'io potea tener lo viso asciutto,/ quando la nostra imagine di presso/ vidi sì torta, che 'l pianto de li occhi/ le natiche bagnava per lo fesso. -v.21-24).
A expressão do mundo baixo, vil, do Inferno, em que descreve situações degradantes e até repugnantes, se faz por uma linguagem às vezes chula. No Canto XVIII, Dante coloca os bajuladores no fundo da segunda vala do Malebolge, imersos nas fezes. Diz ele: ”Ali chegamos; e lá no fosso/ vi gente chafurdada em tal esterco/ que parecia provir de privadas humanas./ E enquanto o fundo com os olhos investigava,/ vi um com a cabeça tão suja de merda/ que não distinguia se era leigo ou clérigo.“(Quivi venimmo; e quindi giù nel fosso/ vidi gente attuffata in uno sterco/ che da li uman privadi parea mosso./ E mentre ch’ío là giù con l’occhio cerco, vidi un col capo sì di merda lordo,/ che non parëa s’ era laico o cherco. -v. 112-117). No final do Canto, Virgílio sugere a Dante olhar mais adiante a bajuladora Taís (personagem de uma peça de Terêncio). Quer que ele veja “a face/ daquela suja e desgrenhada rameira/ que lá se arranha com suas unhas cheias de merda,/ e ora se agacha, ora se levanta./ É Taís, a puta /.../.”: sì che la faccia ben con l’occhio attinghe/ di quella sozza e scapigliata fante/ che là si graffia con l’unghie merdose,/ e or s’accoscia e ora è in piedi stante. / Taïde è, la puttana /.../ (v.129-133)
O fato de ser católico não impede Dante de fazer uma crítica violenta à Igreja de seu tempo. Ele ansiava pelo retorno à simplicidade e ao idealismo dos primórdios da Igreja, anterior à conversão do imperador Constantino, que a dotou de poder temporal. O Canto XIX, dos simoníacos, contém uma alegoria da Igreja Católica que envolve sua crítica numa linguagem contundente: “De vós pastores ocupou-se o Evangelista (S.João)/ quando viu aquela que se assenta sobre as águas (a Igreja)/ prostituir-se com os reis;/ aquela que nasceu com sete cabeças / teve a força e o apoio de dez cornos,/ enquanto a virtude agradava ao seu marido” (o papa) (Di voi pastor s'accorse il Vangelista,/ quando colei che siede sopra l'acque/ puttaneggiar coi regi a lui fu vista;/ quella che con le sette teste nacque,/ e da le diece corna ebbe argomento,/ fin che virtute al suo marito piacque. - v.106-111). Segundo os comentaristas, essa alegoria (recurso literário amplamente utilizado no poema) foi inspirada numa figura do Apocalipse. As sete cabeças representam as sete virtudes e os dez cornos, os dez mandamentos. Atente-se para a linguagem peculiar utilizada: “puttaneggiar coi regi”...
No Canto XXVIII, dos que semearam a discórdia, a cisão, vemos Maomé com o corpo também cindido, aberto, mostrando as vísceras. Dante vê aproximar-se alguém “rasgado desde o queixo até onde se peida./ Por entre as pernas pendiam os intestinos;/ apareciam as vísceras e o triste saco,/ que merda faz daquilo que se engole” (rotto dal mento infin dove si trulla./ Tra le gambe pendevan le minugia;/ la corata pareva e 'l tristo sacco/ che merda
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fa di quel che si trangugia. -v.24-27).
Porém, a linguagem utilizada também pode ser mais sutil. Assim, no Canto XV, dos sodomitas, por exemplo, Dante usa de um jogo de palavras ao referir-se ao bispo de Florença que o papa, transferiu, pela sua conduta escandalosa, do Arno ao Bacchiglione, “onde deixou os dissolutos membros” (dove lasciò li mal protesi nervi- v.114), quer dizer, morreu. Segundo John Ciardi, a expressão mal protesi nerve contém um intraduzível jogo de palavras, pois nervi pode ser traduzido como o “órgão sexual masculino” e protesi como “ereto”, voltado para propósitos anti-naturais (mal); mas também nervi pode ser “nervos” e mal protesi “dissolutos”.
Usando a linguagem chula Dante estava usando a linguagem do povo. Usou-a como usou outras de suas características. A crendice popular, por exemplo. No Canto XXVI, ele afirma que “se próximo ao amanhecer se sonha o vero” (Ma se presso al mattin del ver si sogna- v.7), logo cairão sobre sua cidade natal os males previstos no sonho. Dante “como poeta do mundo secular” (Auerbach) incorpora tal crendice a seus versos assim como incorpora a linguagem chula. Quer com essas opções tornar seu poema mais próximo do espírito do povo. Lembrêmo-nos que ele sempre quis essa aproximação e tal desejo o levou a escrever a “Comédia” na linguagem falada pela gente simples, e não no latim dos eruditos, o que é coerente com o engajamento de sua poesia na defesa da visão de mundo católica. Aliás, o fato da “Comédia” ser um poema engajado prova que é possível haver simultaneamente engajamento a uma causa e grande poesia.
Saliente-se que não só a linguagem de palavras chulas é usada. Também é usada a linguagem de gestos 1) obscenos e blasfemos, quando Vanni Fucci faz figas a Deus, no início do Canto XXV e é, em consequência, imediatamente atacado pelas serpentes; 2) grotescos e hilários, pela atitude dos diabos no Canto XXI, que trata dos que praticaram a barataria (tráfico de influência). A certa altura do Canto, o zombeteiro Scarmiglione ameaça espetar Dante no traseiro, mas Malacoda manda-o aquietar-se. No final desse Canto, uma escolta de dez demônios vai acompanhar os dois poetas. Os diabos antes mostraram a língua para Barbariccia, como um sinal, e este em resposta “fizera do cu trombeta” (ed elli avea del cul fatto trombetta- v. 139).
Câmara Cascudo, em “Dante Alighieri e a tradição popular no Brasil”, afirma, apoiando-se em E.R.Curtius, que o “flatus ventris” era um motivo muito apreciado na Idade Média: “Há longo anedotário sobre o assunto e, contemporaneamente, a literatura oral conserva a gosseira presença desse elemento de comicidade irresistível”.

DANTE E A POESIA DO "INFERNO"



Quais os fatores que explicam a singularidade e a excelência poética da “Divina Comédia”, em particular do “Inferno”? Essa é a pergunta que nos fazemos ao concluir a leitura da edição bilíngüe (italiano-inglês) de “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, a verse translation by Allen Mandelbaum, Bantham Books. Trata-se de uma edição bem apropriada para quem se aproxima da obra pela primeira vez, devido não só à riqueza de informações contida em suas notas, mas também, ou principalmente, à forma como foram traduzidos os versos originais. A tradução não é rimada. Prioriza assim a fidelidade ao que dizem os versos originais, evitando as distorções decorrentes da busca da equivalência sonora na outra língua.
Dentre os fatores que explicam aquela excelência poética, destaque-se, inicialmente, o tema escolhido: uma viagem pelos domínios do além-túmulo, feita por uma pessoa que ainda não morreu. Esse tema sempre despertará interesse porque reflete uma preocupação permanente do ser humano (a suposta vida após a morte). A concepção de Dante (1265-1321) está condicionada historicamente pela visão de mundo da Idade Média Ocidental, em que a religião católica exercia influência preponderante. Assim, Dante (ele mesmo o protagonista de sua obra, atribuindo a ela um caráter mais “verídico”) visitará, conforme o marco de referência teológico daquela religião, o Inferno, o Purgatório e o Paraíso, destino final de todos os seres humanos, após o julgamento divino da nossa conduta terrena.
Se o tema sempre despertará interesse, o tratamento dispensado a ele, em termos de conteúdo e forma, seguramente explica a sua grande poesia.
Quanto ao conteúdo, saliente-se, em primeiro lugar, que se trata de um poema narrativo. Dante narra uma história curiosa, povoada de seres fantásticos (eríneas, harpias, centauros, gigantes etc). Trata-se de uma história sempre interessante ao leitor moderno, ao contrário do que ocorre, às vezes, com outras obras clássicas. Há muita ação nessa história , que progride rapidamente, em capítulos (cantos) curtos. O Inferno possui 34 cantos, e cada canto aproximadamente 150 versos. Nesse “reino”, cada canto descreve uma cena, uma situação, que se altera continuamente. Uma razão adicional para essa leveza da narrativa é a freqüência dos diálogos, não só os mantidos entre Dante e seu guia (o poeta latino Virgílio), mas também aqueles travados entre ele e os personagens que vai encontrando, na sua perambulação.
O que é narrado no “Inferno”? basicamente, aquilo que os dois poetas vêem nessa descida ao mundo dos mortos, com destaque para os sofrimentos impostos aos pecadores, tanto maiores quanto mais graves são os seus pecados, que Dante classifica em função de uma dada escala de valores. Os poetas descem os nove círculos subterrâneos do Inferno (cada círculo contém subdivisões), avançando dos círculos onde estão os pecadores menos condenáveis (os envolvidos pelo excesso das paixões dos sentidos, que abrangem os luxuriosos, glutões etc) até os mais condenáveis (os que traíram seus parentes, amigos e benfeitores, presentes no nono círculo. Aqui, no fundo do Inferno -- onde é dominante o gelo, e não o fogo, como nos círculos iniciais --, encontra-se Lúcifer, um gigante preso ao solo congelado, do centro da terra, que tritura, em uma de suas três bocas, Judas Iscariotes, o apóstolo que traiu Cristo). Dante identifica os pecadores, que ele vai encontrando em sua perambulação: são personagens reais (Brunetto Latini) ou fictícios (Ulisses), históricos ou contemporâneos (o papa inimigo Bonifácio V), notáveis ou não, bíblicos (Eliseu, Caifás etc) ou da mitologia greco-latina (Minotauro). O número desses personagens, e a diversidade de situações aos quais estão associados, além de ilustrar os diversos tipos de pecados, dão um colorido múltiplo ao poema, responsável em boa medida pelo seu encanto. Mas a riqueza do seu engenho poético, da sua imaginação, também se revela nos sofrimentos concebidos para cada classe de pecadores, que faz o poema assumir dramaticidade extrema (Bertrand de Borne segurando a própria cabeça destacada do corpo, os advinhos-fraudadores com as cabeças invertidas no corpo, ironicamente, sem poder enxergar para a frente etc).
Quanto à forma utilizada, ressalte-se, de início, que os sofrimentos infligidos aos pecadores, no Inferno, seriam impostos, a rigor, sobre as almas deles, e não sobre os seus corpos. Não seriam sofrimentos físicos. Mas é dessa forma que são tratados no poema. Assim, algo essencialmente abstrato reveste-se de um caráter concreto, é materializado, descrevendo-se uma situação equivalente, ou analógica, à verdadeira, na concepção católica. Qual a vantagem desse procedimento? é a de que ele permite ao poeta explorar todo o seu potencial visual, plástico, na descrição dos horrores do Inferno, sentidos, por empatia, pelo leitor (ao qual Dante, muitas vezes, se dirige diretamente, acentuando assim o seu caráter de verossimilhança ). Essa é uma razão a mais para o fascínio que o poema exerce. As imagens estão sempre presentes nos versos, o “Inferno” é um poema essencialmente visual. A todo momento, o poeta incorpora a ele comparações e metáforas.
A linguagem adotada por Dante, como se sabe, foi o italiano falado então pelo povo, e não o latim dos eruditos, comumente usado em seus escritos. O uso que fez desse idioma é um fator muito importante para explicar a excelência da sua poesia (embora não imprescindível, pois ainda é gratificante ler o poema em tradução, contrariando assim aquela definição de Robert Frost—“poesia é o que se perde na tradução”): Dante explora a sonoridade das palavras, da qual a rima é o exemplo mais evidente, mas não o único (ele adota o esquema ABA BCB CDC... para as rimas dos versos decassílabos, que formam os tercetos do poema). Dante estava consciente da funcionalidade da linguagem para alcançar certos efeitos na poesia, conforme atestam seus escritos. Assim, o Inferno apresenta uma linguagem que se quer áspera, rude, que será diferente daquela adotada no “Paraíso”. Há mesmo a presença de termos chulos ou vulgares no “Inferno”, gestos obscenos (começo do canto 25), além de situações grotescas, como a do poço de excremento, reservado aos bajuladores, ou aquela do canto 21, verso 139, em que um dos diabos (Barbariccia) solta sons grosseiros, equiparados ao de uma trombeta...: “ed elli avea del cul fatto trombetta.”

"A ROSA DOENTE" de William Blake



O poema “The Sick Rose”, apresentado abaixo, com a tradução que fizemos para o português, foi composto por William Blake (1757-1827), um dos mais importantes representantes do Romantismo inglês. O poema comporta múltiplas interpretações, e sugestões, conforme a rica bibliografia existente sobre ele.
O rose, thou art sick! Ó rosa, tu estás doente!
The invisible worm O inseto invisível
That flies in the night, Que voa na noite,
In the howling storm, Na tempestade uivante,

Has found out thy bed Alojou-se em teu leito
Of crimson joy, De alegria carmim,
And his dark secret love E seu amor secreto e escuro
Does thy life destroy. A tua vida destrói.

A primeira leitura é aquela meramente denotativa. O poeta dirige-se à rosa, alertando-a de que ela está doente (ela, personificada, não está consciente disso, precisa ser alertada para o fato). Em seguida, refere-se ao inseto (literalmente, ao verme- “worm”) invisível, que, normalmente, é levado pelo vento, nas noites de tempestade. Esse inseto já se alojou nela, em seu “leito de alegria carmim”. E “seu amor secreto e escuro” está destruindo a vida da flor.
Uma leitura atenta, em busca do significado mais recôndito do poema, suscita muitas questões. Em primeiro lugar, há uma polarização evidente entre “rose” e “worm”. Qual o significado desses dois elementos da natureza?
Da rosa, o poema afirma o seguinte: 1) ela está doente; o amor do inseto está destruindo sua vida; 2) é vermelha, possui um “leito de alegria carmim”.
Do inseto, afirma-se que 1) é invisível; 2) está associado à noite, à tempestade uivante; 3) é ativo (ao contrário da rosa, que é passiva), aloja-se na flor, e é causa da destruição da vida dela.
Por outro lado, para identificar o sentido desses dois elementos, é necessário incorporar também as idéias usualmente associadas à rosa e ao verme, ou inseto. À rosa está associada a idéia de beleza natural, de mulher (inclusive, é prenome feminino), de vida, em sua manifestação ostensiva na natureza. Quanto ao verme, ao inseto, as associações são negativas: ele é elemento repugnante, nocivo à saúde, feio, secreto (não ostensivo, como a rosa).
Em nossa opinião, Blake, ao dirigir-se à flor, quer dirigir-se, na realidade, à mulher (uma vez que “Rose” é nome de flor e prenome feminino). Pretende alertá-la de que está doente, em decorrência da presença de algo danoso à sua vida alojado nela. Que doença é essa, da qual ela não se dá conta? (ela se sente bem, portanto). É uma doença imperceptível, que levará à sua morte. Esses termos (doença, vida, morte) podem ser entendidos tanto num sentido físico quanto espiritual.
No sentido físico, a mulher, embora se sentindo bem no momento, já pode estar contaminada pelo vírus da doença, que destruirá a vida dela.
No sentido espiritual, o verme poderá significar qualquer coisa que represente dano à vida da mulher, em sua expressão mais verdadeira, ou elevada (por exemplo, a religião, reprimindo a sua sexualidade; o mal comprometendo a sua beleza; o pecado ameaçando a sua inocência, e assim por diante).
É possível, todavia, entender o poema num sentido menos abstrato, referindo-se à mulher (virgem) que se envolveu numa relação amorosa “secreta e noturna”, pecaminosa, conforme a concepção judaico-cristã do poeta. O visitante noturno, um verme moral (“The invisible worm/ That flies in the night”), associado ao Mal (“night”/ “howling storm”), já deitou em seu leito ( “Has found out thy bed”), “de alegria carmim” (“Of crimson joy”), leito esse associado não só ao prazer (alegria), mas também ao carmim, do sangue do desvirginamento. Assim, o amor secreto (sem o reconhecimento social) e escuro (das trevas, do Mal, em contraposição ao Bem, associado à luz) desse visitante noturno, masculino (cf. pronome em “And his dark secret love”, grifo nosso) destrói a vida da mulher que, por viver em pecado, está condenada no além. Assim como o inseto, o caruncho, destrói a vida da flor, esse amor destrói a vida da mulher, não necessariamente no sentido físico (embora o advento da AIDS, em nosso tempo, também possa significar isso), mas no sentido espiritual, significando a morte da inocência, do espírito, subjugado que foi pela matéria, pelos apelos da carne.

"A TERRA DO FUTURO", DE NESTOR VITOR



“A Terra do Futuro (Impressões do Paraná)” é um livro escrito em 1912 e decorre da aceitação de uma proposta de trabalho feita por Nestor Vítor ao governo Carlos Cavalcanti, que se iniciou naquele mesmo ano. Consiste numa caracterização geral do Paraná como ele então se apresentava em termos físico-territoriais, econômicos e sociais, indicando problemas e potencialidades. Sobre essa realidade a nova administração estadual já começava a atuar, e o livro contém várias referências aos planos governamentais em andamento. Seu autor, Nestor Vítor- NV (1868-1932), jornalista e escritor de prestígio nacional, nascera em Paranaguá mas vivia no Rio de Janeiro há muitos anos. Publicara em 1911 um livro de natureza semelhante sobre Paris, e essas “impressões de um brasileiro”, elogiadas por Sílvio Romero e outros críticos, certamente o inspiraram a fazer tal proposta ao governo paranaense, pela qual seria remunerado. Assim, “A Terra do Futuro” primeiro apareceria em artigos no “Jornal do Commercio” do Rio (conforme a idéia inicial da proposta) e posteriormente sob a forma de livro, editado na então Capital Federal em 1913.
A obra circunscreve-se aos limites territoriais do Paraná (cuja superfície incluía o território contestado por Santa Catarina), descrevendo-o geograficamente e referindo-se aos seus antecedentes históricos.
Para realizar a sua tarefa, NV baseou-se 1) na observação direta do que via (e do que vira vinte e cinco anos antes, incorporando assim no texto as suas impressões pessoais decorrentes dessa comparação); 2) nas informações prestadas pelas diversas personalidades que entrevistou (empresários, dirigentes governamentais, intelectuais), muitas delas hoje nomes de rua, o que permite ao leitor travar conhecimento com tais pessoas em plena atividade; e 3) em publicações disponíveis sobre o Paraná, de estudiosos como Sebastião Paraná, Romário Martins, Domingos do Nascimento etc. O livro é de leitura fácil, e inclui os diálogos mantidos com aquelas personalidades, contendo informações estatísticas ou de outra natureza sobre o assunto em discussão.
“A Terra do Futuro” contém 16 capítulos, cuja organização reproduz grosso modo o itinerário seguido pelo autor em sua viagem ao estado natal, onde passaria trinta e tantos dias recolhendo subsídios para o livro.
Ao longo da obra, o leitor obtém uma visão geral do território paranaense então ocupado, o que excluía, a rigor, as regiões norte, oeste e sudoeste. O Paraná contava em 1912 apenas 47 municípios, e o município de Guarapuava, sozinho, representava um quarto do território estadual.
NV chega a Paranaguá num “vapor costeiro”, procedente de Santos. E é por aí que ele inicia o relato de sua viagem. Os três primeiros capítulos referem-se a Paranaguá e ao litoral oceânico, onde também se inicia a história do Paraná. Assinala que Paranaguá já foi a cidade marítima mais importante de todo o sul do Brasil, de Iguape até o rio da Prata. E ainda em 1853, ano da nossa emancipação política, Paranaguá era mais importante que Curitiba, tanto demografica quanto economicamente.
No cap.4, o autor refere-se à “região fluvial quente”, uma vasta região que abrange as terras do Assungui, do Tibagi, do “florescente extremo norte” (região de Jacarezinho, Ribeirão Claro, Tomazina etc que sofrera a invasão de paulistas e mineiros e onde se desenvolvia rapidamente a cafeicultura) e a zona oeste, então completamente inexplorada.
Todo o capítulo seguinte é dedicado à descrição detalhada da “subida da serra” pela estrada de ferro Paranaguá-Curitiba.
Os capítulos 6 a 12 tratam de Curitiba e sua área de influência. Inicialmente (cap. 6), o autor trata da “velha Curitiba”, que se tornou vila em 1693 (Paranaguá já o era desde 1648) e sede de comarca, em substituição a Paranaguá, em 1812, quando ainda pertencíamos à província de São Paulo. Curitiba, para NV, se desenvolveria principalmente em decorrência da construção da estrada da Graciosa e da vinda de imigrantes europeus, que se estabeleceram nos arredores da cidade e passaram a abastecer “fartamente” o mercado da capital com produtos alimentares. A Curitiba de então -- que em 1912 tinha uma população entre 60 e 70 mil, incluindo os arredores -- é abordada em seguida sob diversos aspectos, tais como o dos “aspectos físicos e condições de vida” (cap.7), em que é salientada a modificação arquitetônica pela influência alemã, o dos “aspectos industriais” (cap.8), em que se destacavam os engenhos do mate, Muller & Irmão, a fábrica de pianos Essenfelder dentre outras plantas existentes, e o dos “aspectos sociais e intelectuais” (cap. 9). NV elogia aqui o círculo literário constituído em Curitiba, “o mais ativo e distinto de quantos existem no Brasil, excetuando o do Rio”, importante desde a fundação da revista “Cenáculo” em 1895. E arrola os nomes que mais se destacavam então nas letras paranaenses (poesia e prosa). O cap. 10 é sobre os “arredores e subúrbios” de Curitiba, que ele visita acompanhado por Emiliano Perneta. As “colônias” são o tema do capítulo seguinte. Havia então 20 colônias agrícolas localizadas nos arredores de Curitiba (das quais as principais eram Santa Felicidade, Argelina, Riviere, Santa Cândida, Abranches e Antônio Prado) e 9 em São José dos Pinhais (com destaque para Tomaz Coelho e Muricy). Dessas, NV visita as colônias Muricy e de Santa Felicidade. Em 1912, o Paraná contava 113 núcleos coloniais, sendo 9 federais, 78 estaduais, 14 municipais e 12 particulares. O cap. 12 trata da “zona de influência” de Curitiba. Além de três cintos, formados pelos subúrbios e colônias em torno da cidade, NV usa a imagem de um ângulo obtuso para ilustrar sua área de influência, ângulo com vértice em Rio Negro, de um lado alcançando Cerro Azul e de outro, Porto União. Estradas de rodagem (e não mais caminhos para “cargueiros”, i.e. bestas de carga) ligavam Curitiba a Antonina, à Lapa, a Mandirituba e a Itararé. A estrada Curitiba-Palmeira-Ponta Grossa, conhecida como “estrada de Mato Grosso”, fora concluída em 1882. Quanto às estradas de ferro, além da linha Curitiba-Paranaguá, inaugurada em 1885, ocorreu o seu prolongamento até Ponta Grossa já no período republicano. Em 1900 inaugurou-se o primeiro trecho da estrada de ferro São Paulo-Rio Grande, e em 1909 essa estrada permitia a ligação ferroviária do Rio de Janeiro com Porto Alegre.
O cap. 13 trata dos “velhos Campos Gerais”. Partindo de Curitiba, NV viajou de trem para Ponta Grossa, ponto de convergência de linhas férreas, que punham em comunicação São Paulo e o Rio Grande do Sul com Curitiba e Paranaguá. NV visitara a região vinte e cinco anos antes, i.e. por volta de 1887. Nota que Ponta Grossa progrediu muito desde então, principalmente depois da estrada de ferro. Mas já a construção da estrada de Mato Grosso melhorara muito a situação da região. Castro, destino final de NV naquela primeira viagem, é a mais antiga povoação dos Campos Gerais (freguesia em 1774 e vila em 1789; Ponta Grossa só se tornaria vila em 1855). Em Castro só ficavam os negociantes, os empregados públicos... e os “madraços” (vadios). Os homens mais importantes, com suas famílias, passavam a maior parte do tempo nas suas “estâncias de criar”. O habitante daquela região tinha mais semelhança com o riograndense do que com o paulista. As bestas do Rio Grande engordavam ali para depois serem vendidas na feira de Sorocaba. NV refere-se ainda à região de Guarapuava, cuja conquista definitiva só se daria em 1810, com a expedição de Azevedo Portugal. Depois disso, começaria o povoamento dos Campos de Palmas.
O próximo capítulo é sobre “A nova Ponta Grossa”. NV registra inicialmente o fato de que se vinha construindo muito em Ponta Grossa nos últimos dez anos. Devido às ligações ferroviárias, o comércio de Ponta Grossa tinha então relações mais intensas com São Paulo do que com Curitiba. Além das oficinas da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande, havia ali diversos estabelecimentos industriais. Ponta Grossa estava ligada por estrada de rodagem a Guarapuava, no terceiro planalto, o que facilitava as relações comerciais entre as duas cidades. Também se ligava a Tibagi por estrada. Ponta Grossa era então o centro do comércio no interior do Estado. NV representa sua área de influência por um triângulo isósceles formado por Jaguariaíva-Guarapuava-São Mateus-Jaguariaíva.
NV dedica todo o cap.15 aos aspectos mais curiosos e de interesse turístico da nossa natureza, referindo-se aos sambaquis, a diversas grutas, aos Buracos e Vila Velha, às ruínas e vestígios da República Teocrática de Guairá e, com maior destaque, às cachoeiras do Paraná.
O último capítulo aborda “O momento atual”. O Paraná em 1912 vivia uma ”crise de progresso” (o Estado estava importando gêneros de primeira necessidade). Mas isso ocorria porque os braços disponíveis estavam todos empregados na construção de estradas de ferro, na indústria de madeiras, na erva mate e na plantação de café no nordeste do Estado, em franca expansão, por não haver aqui as restrições que havia no lado paulista.. E o Estado nesse ano continuava a receber imigrantes, especialmente polacos e italianos... Aliás, a expressiva imigração européia singularizava a população do Paraná perante as outras unidades da Federação. A menor participação dos negros e pardos nessa população é várias vezes salientada por NV, que a considera um aspecto “favorável” do Estado. Essa é uma concepção inaceitável hoje em dia. Mas o preconceito racial de NV era o de sua época, baseado em argumentos pseudo-científicos...
Concluído seu trabalho, NV segue para São Paulo pela estrada de ferro Ponta Grossa-Itararé, interligada à Sorocabana, primeira parte de sua viagem de retorno ao Rio de Janeiro. Não havia baldeação alguma entre Curitiba e São Paulo, pois a Brasil Railway administrava tanto a Sorocabana quanto a São Paulo-Rio Grande, e também as estradas de ferro do Paraná. A propósito, a Lumber Company, que se instalou aqui em 1908 para explorar a madeira, era uma das subsidiárias da Brasil Railway. NV estava ciente de que o Código Florestal, aprovado em 1907 (“et pour cause”...), não seria cumprido por ela. Os inúmeros pinheiros abatidos pela Lumber, que levavam cem anos para atingirem o seu completo desenvolvimento, não seriam repostos...
(Publicado no "Jornal da Biblioteca" nº 2, mar-mai 2004)

A POESIA DE LI PO



A publicação em 1996 de “Poemas Chineses” pela Editora Nova Fronteira, tradução de Cecília Meireles, nos dá a oportunidade de conhecer uma amostra da produção de dois dos mais famosos poetas da literatura chinesa – Li Po e Tu Fu.
Eles pertencem à dinastia Tang (618-907) que, na história da China, se notabilizou pela riqueza e excelência da produção poética.
Neste artigo, minha atenção estará voltada para os quarenta e seis poemas de Li Po (701-762) que constam daquela coletânea, buscando caracterizá-los no que têm de mais singular, a fim de formular uma primeira idéia a respeito da poesia chinesa (através das composições de seu representante mais famoso no Ocidente), embora filtrada pela sensibilidade ímpar de Cecília Meireles.
Valendo-me da distinção presente na citação de Camilo Pessanha, que consta da Introdução a esses “Poemas Chineses”, me deterei no seu “elemento substantivo ou imaginativo”, uma vez que o “elemento sensorial ou musical”, resultante de “uma técnica métrica especialíssima”, não pôde ser traduzido pelos poetas ocidentais, nos quais se basearam certamente essas traduções, por ser “absolutamente inconversível”.
Não se sabe ao certo onde Li Po (ou Li Bai) nasceu, apenas que se mudou, ainda menino, para Sichuan. Fez estudos regulares, destacando-se neles pelo seu brilhantismo. Serviu na corte do imperador e perambulou por boa parte da China. Morreu embriagado, tentando abraçar o reflexo da lua nas águas do Yang-tsé. Essa versão, supostamente lendária, sobre a morte do poeta é muito significativa, pois envolve os dois maiores motivos de sua poesia – a lua e a bebida.
Li Po é o poeta da lua e do vinho. Há uma recorrência constante desses motivos na grande maioria dos poemas. Em “Bebo sozinho ao luar” (p.36), com tons surrealistas, ele levanta sua taça, oferecendo-a à lua: “com ela e a minha sombra, já somos três pessoas”. Depois, “embriagados”, vão para casa. Mas ele continuará ligado a esses companheiros, encontrando-os na Via Láctea. Em “Com a taça na mão, interrogo a lua” (p.37), conforme uma personificação presente em muitos poemas, como se verá, ele se dirige à lua como se fosse uma pessoa. Expressa aqui a convicção de que tudo flui, tudo passa, não só os homens que admiram a lua, mas também ela própria, apesar da sua aparente imutabilidade. Ressalte-se a imagem insólita da lua comparada a um “espelho voador”. Mas a junção daqueles dois motivos pode produzir também poemas de outro tipo, como o intitulado “Canção da tristeza” (p.59-60), em que o poeta interrompe uma festa, já bem adiantada, na hora em que os “convivas estão menos alegres”, para entoar essa “Canção” e falar da precária condição humana. Afirma em certo momento: “(Escutai, lá longe, no campo branco de lua,/ escutai os macacos que choram,/ acocorados nos túmulos em abandono!)”. Mas essa tônica amarga não é a mais freqüente na poesia de Li Po, que se caracteriza por ser predominantemente alegre (dionisíaca, diria um ocidental), de muito vinho, canções e dançarinas, embora eivada, às vezes, de melancolia.
Uma característica marcante dos poemas é a presença neles de elementos da natureza (lua, montanha, relva, flores, vento, nuvem, lago, rio etc), em toda sua concretitude; daí a importância do aspecto visual, descritivo, dos versos, e a busca incessante da objetividade, evitando-se a mera confissão de sentimentos. A natureza está em harmonia, num equilíbrio poético, e a intervenção humana rompe a placidez do cenário natural, o que é motivo de tristeza para o poeta (cf. “Passeio entristecido”, p. 64). A natureza serve de referencial (estético, filosófico) permanente para Li Po.
Os elementos da natureza (minerais, vegetais ou animais) são humanizados, numa personificação recorrente, chegando a ocorrer poemas em que a presença humana está totalmente descartada. Em “Garça branca” (p.56), por exemplo, um grande floco de neve é comparado a uma garça branca, que pousa sobre um banco de areia, e fica ali, “observando” o inverno. Normalmente, todavia, ocorre a presença humana, contrastando com a paisagem natural, em que a lua “olha” para o poeta escrevendo versos (p.55), os nenúfares “cantam” hinos de amor à lua (p. 64), antes dele perturbar essa placidez, e os cavalos levantam “queixas ao céu” (p. 31), ou relincham “tristemente” (p. 40).
O ideal para Li Po é a integração do homem à natureza (cf. “Diálogo na montanha”, p. 48). Quando lhe perguntam porque mora na verde montanha, o poeta apenas sorri, sem poder responder, numa postura anti-intelectualista, pois não há como pôr em palavras a beleza das “flores de pessegueiro” sendo “levadas pela água do rio...” Também em “Meio-dia” (p.34) constata-se a mesma satisfação de estar vivo, em comunhão com a natureza. Em “Caçada” (p.41) há esse elogio à vida ao ar livre, por parte do letrado Li Po: “(Fechado até a velhice atrás de cortinas,/ como pode o letrado competir com o cavaleiro?)”.
Uma outra característica dos poemas é a de que tudo é motivo para a poesia, especialmente os fatos mais singelos, como, por exemplo, a dançarina meio embriagada que cambaleia e se apóia num móvel (p.69) ou a jovem numa carruagem que cruza com um cavaleiro e lhe dá um sorriso (p.42). Li Po apenas constata esses incidentes, objetivamente, não interpreta os sentimentos das pessoas neles envolvidas. O poeta não se volta para grandes temas. Seu interesse assim é semelhante ao da poesia moderna ocidental: não existem temas especiais para a poesia, tudo é motivo para ela. Mesmo quando se ocupa de “grandes” temas, da guerra, por exemplo, sua ótica é a dos soldados que, montando guarda em região ocupada, estão saudosos de casa (cf. “Canto de guerra”, p. 74). Ou então aproveita para constatar que os “bárbaros ocupam-se de assassinar como nós de lavrar”, concluindo o poema (“Combate-se ao sul da muralha”, p. 30) com esses versos sábios, especialmente considerando-se a época em que foram escritos (séc. VIII): “Sabei que as armas são uma coisa perversa:/ o sábio não recorre a elas senão a contragosto”.
Os temas mais freqüentes dos poemas não são, todavia, os da guerra, mas os das lembranças; da alegria de viver; da mulher distante do marido ou abandonada por ele (em que o poeta assume a condição feminina e lhe dá voz); da despedida do amigo; do erotismo; da passagem do tempo, especialmente para a mulher; da efemeridade do poder político (os palácios desaparecem e em suas ruínas prevalecem, de novo, os elementos da natureza – a erva, os arbustos, as cigarras cantando ... cf. “Em Nanquim”, p. 67; “Ruínas de Su-Tai”, p. 61. Nesse palácio, “Hoje, a lua de Si-kiang é a única dançarina a bailar/ nas salas por onde deslizavam tantas mulheres formosas”)
Com relação à estrutura formal, geralmente o poeta apresenta o “cenário”, ou uma descrição, para depois narrar uma pequena história, ou um incidente, e então concluir com uma reflexão, ou observação pessoal.
Diferentemente da poesia moderna ocidental, mais cerebral, os poemas de Li Po são fáceis de ler. Apresentam pouco hermetismo e referências histórico-culturais, o que é uma das razões para a sua maior penetração no Ocidente, ao contrário de outros poetas chineses, segundo alguns autores.
Por sua beleza formal, vale a pena destacar alguns versos, ou poemas, além dos já citados. Em “Combate-se ao sul da muralha” ocorrem versos de grande força expressiva e beleza plástica. “Combate-se nas planícies: mata-se, morre-se,/ os cavalos dos mortos relincham, levantando queixas ao céu./ Os corvos bicam as entranhas dos mortos,/ depois voam e pousam-nas nos ramos das árvores secas.” (p. 31). No poema “Rosa vermelha” (p. 39), há um belo contraste entre o branco (da rosa que está sendo bordada pela esposa e da neve do campo de guerra de que seu marido participa) e o vermelho (do sangue da esposa que se pica, e corre sobre a rosa que bordava, e do sangue do marido, que pode estar tingindo o campo de neve). Em “Lembranças” (p. 54), as árvores do jardim sob as quais, outrora, o poeta esperava pela amada que o deixou, insensível como as pedras, igualmente se petrificam, tornando-se “árvores de jade”. Esse expressionismo de Li Po também é revelado em “Os corvos crocitam na noite” (p.32), cuja ambiência (corvos crocitando, noite) acentua a tristeza da esposa, longe do marido, que não volta para casa, ao contrário dos corvos, que retornam para seus ninhos. “Caracteres eternos” (p. 66) focaliza o poeta escrevendo versos, enquanto na sua janela os bambus balançam. Nele consta essa bela comparação: “Os caracteres que traço parecem/ brotos de ameixeiras esparsos na neve” (vale dizer, a folha de papel). Em “Fim da tristeza” (p. 76), os versos iniciais associam o brilho prateado do luar na água a peixes: “As pequenas vagas brilham ao luar/ que prateia a limpidez verde da água./ É como se mil peixes corressem para o oceano.” O poeta fala da alegria proporcionada pela beleza dos nenúfares, humanizados, nas águas em que seu barco flutua, afastando a tristeza que sentia até então. “A thing of beauty is a joy for ever” seria dito mais de mil anos depois por um poeta ocidental (John Keats), expressando o mesmo fenômeno. Isso revela como a Poesia pode reiterar verdades sobre a condição humana, apesar de suas manifestações se distanciarem no tempo e no espaço.
(Publicado em "Nicolau"- ano XI, nº 60)

quarta-feira, 4 de março de 2009

UM REPRESENTANTE DA ELITE PARANAENSE DO SÉC. XIX: O TEN-CEL CAETANO JOSÉ MUNHOZ


No ano do centenário da emancipação política do Paraná, em 1953, constatou-se “uma curiosa coincidência de significado histórico”, nas palavras do escritor paranaense Samuel Guimarães da Costa (1919-1997): os três poderes do Estado estavam nas mãos de bisnetos de Caetano José Munhoz. O chefe do poder Executivo era então Bento Munhoz da Rocha Neto, do poder Legislativo o deputado Laertes Munhoz e do Judiciário o desembargador Munhoz de Melo. O mesmo autor lembra ainda que Caetano José Munhoz “participara há cem anos passados das solenidades de posse do primeiro governador da Província Zacarias de Góes e Vasconcelos, por sinal homenageado e recepcionado em sua residência”. O fato revela a persistência da importância, na história social do Paraná, de uma daquelas famílias tradicionais que integram a classe dominante do Estado, conforme mostrou Ricardo Costa de Oliveira em seu substancioso estudo “O Silêncio dos Vencedores: Genealogia, Classe Dominante e Estado no Paraná”, publicado em 2001.
Mas quem foi Caetano José Munhoz, sobre quem há poucas e esparsas referências na bibliografia histórica do Paraná? Para saber mais sobre ele, levantei informações no jornal “Dezenove de Dezembro”, o primeiro a ser publicado no Paraná, cobrindo o período 1854-1890. O meio em que CJM viveu tinha uma população diminuta. Em 1853, quando a Comarca de Curitiba e Paranaguá se emancipou da província de S.Paulo, a nova província contava com uma população de pouco mais de 60 mil habitantes, e a da sua capital não chegava a 7 mil habitantes. Curitiba deixara de ser “vila”, para obter o “status” de “cidade”, apenas em 1842...
O tenente-coronel (da Guarda Nacional) CJM nasceu em Paranaguá em 1817. Com relação à sua origem social, sabe-se que seu pai, Florêncio José Munhoz, possuía uma fazenda na baía de Paranaguá, onde criava gado (mais de 80 reses) e mantinha lavoura, além de dedicar-se também ao comércio exportador. A mãe, D. Luíza Lícia de Lima, trineta de Baltazar Carrasco dos Reis, pertencia a uma família de posses, pois seu pai era arrematante de um contrato público relativo à navegação do rio Nhundiaquara, em Morretes. O bisavô dela é considerado o fundador de Antonina, uma vez que a cidade surgiu em torno da capela erigida nas terras dele.
CJM veio para Curitiba muito moço. Seu nome está associado à instalação de um dos primeiros engenhos de erva-mate aí localizado, em 1834 (até então eles só existiam no Litoral). Era movido a força humana e hidráulica. No verbete sobre CJM do “Dicionário Histórico e Geográfico do Paraná”, de Ermelino de Leão, consta esta descrição curiosa dos trabalhadores cobertos do pó verde da erva: “Os operários do engenho eram todos escravos que durante o trabalho, somente vestidos com uma tanga de aniagem ou saco velho, apresentavam um aspecto curioso: à negra epiderme aderia um pó verde e as sobrancelhas, bigodes e cabelos cobriam de
camadas intensas de ouro verde”. (vol. 1, p.247). As águas do rio Belém, que atravessa Curitiba, seriam aproveitadas para mover o engenho da Glória (cujo nome aliás daria origem ao do bairro-- Alto da Glória), localizado em frente ao atual prédio do Colégio Estadual do Paraná. Foi na residência junto a esse engenho que CJM oferecerá, vinte anos depois, a recepção antes mencionada ao destacado político do Império Conselheiro Zacarias de Góes e Vasconcelos, nomeado por D.Pedro II o primeiro presidente da nova província.
Em 1853, o ciclo do mate estava em plena expansão, tendo iniciado por volta de 1820, com a vinda a Paranaguá do experiente comerciante argentino Francisco Alzagaray, conhecedor das exigências do mercado platino. A partir de então, o mate seria o sustentáculo da economia paranaense por mais de cem anos. A maior proximidade dos ervais e a rentabilidade auferida justificavam a instalação de engenhos no planalto curitibano, embora mais distante dos portos de Paranaguá e Antonina, de onde se exportava o produto para a Argentina, Uruguai e Chile. Era a demanda desses mercados que estimulava o desenvolvimento da economia do mate no Paraná.
CJM viria a ser um dos principais ervateiros de seu tempo, produzindo um mate de boa qualidade (livre de falsificações), com marcas conceituadas naqueles mercados, conforme atestam referências no jornal “Dezenove de Dezembro” e no relatório de Louis Couty, preparado por esse especialista francês para o Ministério da Agricultura do Império.
CJM foi o primeiro a implantar engenho a vapor em Curitiba, em 1872, antes mesmo que essa fonte de energia fosse utilizada pelo Barão do Serro Azul, na fábrica Tibagy (de 1878). Participou de várias exposições provinciais e nacionais, além da Exposição Universal de 1876, na Filadélfia, realizada em comemoração ao centenário da independência americana, que foi visitada por D.Pedro II. Recebeu vários prêmios nessas ocasiões.
A sua posição de destaque no âmbito do sistema produtivo levou-o a ocupar outras posições de relevo na comunidade curitibana. Assim, ele foi tenente-coronel comandante de um corpo de cavalaria da Guarda Nacional de Curitiba e deputado à Assembléia Legislativa Provincial nos períodos 1856-57 e 1860-61 (os mandatos então eram bienais). Não se destacou nessas atividades. Como comandante da Guarda Nacional, não conseguiu cumprir as metas estabelecidas pelo governo central para o recrutamento de voluntários para a Guerra do Paraguai, razão por que acabaria sendo suspenso de tal função pelo presidente Horta de Araújo, embora razões políticas devam ter pesado mais nessa decisão (o presidente era vinculado ao partido Liberal). Como deputado, também não se notabilizaria, exercendo, por um período, as funções de secretário da Assembléia. De qualquer forma, deu sua contribuição à Assembléia quanto da discussão do projeto destinado a regulamentar a exploração e processamento da erva-mate, visando coibir as falsificações e assegurar a boa qualidade da erva-mate exportada pelo Paraná. Ainda na condição de político, ligado ao partido Conservador, vale destacar que CJM foi eleito vereador de Curitiba para o quadriênio 1877-80. Porém só exerceu esse mandato por alguns meses, pois faleceu em julho de 1877, aos 60 anos de idade.
Dentre os cargos relevantes que ocupou, acredito que se saiu melhor no de juiz municipal substituto, para o qual foi nomeado por diversos presidentes da província. A legislação da época permitia a nomeação para esse cargo de pessoas leigas, “cidadãos notáveis do lugar, pela sua fortuna, inteligência e boa conduta”. CJM ocupou-o por 15 anos, nos períodos 1854-62 e 1870-77. Parecia corresponder mais ao seu perfil psicológico. Era homem “de caráter firme e princípios severos e inabaláveis”, como afirma o genealogista Francisco Negrão (1871-1937), amante da ordem e da estabilidade, requisitos indispensáveis para o exercício da atividade empresarial, sua verdadeira vocação.
Aparentemente CJM pertenceu à corrente antiabolicionista do partido Conservador, liderada por Manoel Eufrásio Correia, genro do Visconde de Nácar, o homem de negócios mais importante de Paranaguá e região, que se destacava no comércio e outras atividades econômicas e possuía 50 escravos em suas propriedades (o Visconde era procurador e compadre de CJM). Para avaliar o grau de conservadorismo de Manoel Eufrásio, basta dizer que ele se opusera à aprovação do projeto que dava a liberdade aos filhos de escravos, conhecida depois como “Lei do Ventre Livre”, promulgada durante o gabinete chefiado pelo Visconde do Rio Branco, do seu próprio partido.
CJM também desenvolveu outras atividades, de interesse comunitário. Nesse sentido, participou da Comissão de Saúde, presidida pelo Dr.Murici, que propôs medidas para que a cidade se prevenisse contra a ameaça do “cholera morbus”. Colaborou para a administração da Santa Casa de Misericórdia de Curitiba. Contribuiu financeiramente para a fundação da Biblioteca Pública do Paraná. Participou, como tesoureiro, da administração da Associação Paranaense de Aclimação, criada pelo presidente Lamenha Lins e destinada a “aclimar” espécies vegetais à nossa realidade. Em 1876, foi um dos paraninfos da cerimônia de lançamento da pedra fundamental da nova matriz, atual Catedral de Curitiba.
CJM casou-se duas vezes, a primeira com D.Francisca Cândida de Assis Franco (bat. 1819-61), filha do português João Gonçalves Franco (pessoa conceituada na sociedade local que chegou a ser presidente da Câmara Municipal de Curitiba) e de D. Escolástica Angélica Bernardino, filha por sua vez de um dos primeiros “mestres-régios” do Paraná, o ten-cel Manoel Teixeira de Oliveira Cardoso. Dentre os irmãos de D. Francisca, incluem-se o brigadeiro Manoel de Oliveira Franco, o comendador João de Oliveira Franco e a primeira professora do ensino público de Curitiba, Rita Ana de Cássia Franco (há um retrato a óleo dela no Museu Paranaense, pintado por Maria Amélia d’Assumpção).
Desse primeiro casamento de CJM nasceram dez filhos, três dos quais são: 1) Maria Leocádia, que casou com o português Manoel Martins da Rocha, pais de Bento Munhoz da Rocha, de quem descem diretamente dois governadores do Paraná, seu filho Caetano Munhoz da Rocha, que presidiu o Estado de 1920 a 1928 e o neto, de mesmo nome, que o governou de 1951 a 1955, quando deixou o governo do Estado para assumir o ministério da Agricultura na gestão Café Filho. Bento foi simultaneamente político e intelectual, católico neo-tomista; escreveu vários livros sobre temas sociológicos e históricos; 2) Caetano Alberto, pai do escritor Alcides Munhoz, que polemizou com Sílvio Romero sobre a imigração alemã para o País, e avô do deputado Laertes Munhoz, presidente da Assembléia Legislativa do Paraná em 1953; 3) João Alberto, avô do desembargador Munhoz de Melo, chefe do poder Judiciário naquele ano.
Do segundo casamento de CJM, com D.Narcisa de Paula Xavier (1844-1909), sobrinha-neta de Francisca e vinte e sete anos mais nova do que ele, nasceram oito filhos, inclusive D. Maria Munhoz, que se casou com o importante industrial de erva-mate Jordão Mäder, pais do prof. Algacyr Munhoz Mäder, ex-reitor da Universidade Federal do Paraná (1971-73).
A questão da maior ou menor importância da escravidão no ciclo do mate da economia paranaense é assunto controverso. Enquanto Otavio Ianni, na obra “As Metamorfoses do Escravo”, salienta essa importância, Temístocles Linhares, autor da “História Econômica do Mate”, a minimiza, levando em conta as características da atividade ervateira e o alto custo de um escravo.
De qualquer forma, apesar da existência da lei de 1831, que proibia o tráfico negreiro, este, como se sabe, continuou ocorrendo no País, até meados do século, e Paranaguá continuou sendo um importante centro de comércio de escravos, que inclusive se intensificou a partir daquele ano, conforme afirma o historiador paranaense Romário Martins (1874-1948). Foi na baía de Paranaguá, aliás, que ocorreu, em 1850, o episódio do Cormorant, cruzador britânico que perseguiu navios negreiros até dentro da baía, sendo rechaçado por tiros de canhão desfechados pelo forte da ilha do Mel, o qual criaria um grave incidente diplomático com a Inglaterra...
CJM, como vimos, usava escravos em seu engenho. E o jornal “Dezenove de Dezembro” faz diversas referências a escravos pertencentes a ele, transcritas a seguir:
Dia 20.
Pela patrulha foram recolhidos à prisão, à disposição do Exmo. Sr. Dr. chefe de polícia o alemão Carlos Forster, por ébrio, e o escravo Marcelo, do tenente-coronel Caetano José Munhós, em conseqüência de haver sido encontrado depois do toque de silêncio.
(DD de 25.03.1865- p.4; seção “Repartição da polícia”)
Pelo código de posturas de Curitiba (lei nº 79 de 11.07.1861) havia multas para senhores de escravos e castigos para escravos que andassem pelas ruas “depois do toque de silêncio” (hora de silêncio ou recolher: 9hrs da noite no inverno; 10 hrs no verão).
ESCRAVO FUGIDO
Acha-se fugido o escravo Gabriel, crioulo, de idade 20 anos, cor preta, um pouco magro; quem o apreender e levá-lo a seu senhor, Caetano José Munhós, será gratificado.
(DD de 13.01.1866-p.4)
Na seção “Óbitos” consta o de “Antônio, 40 anos, escravo do tenente coronel Caetano José Munhós”
(DD de 28.02.1866- p.3)
Em “Noticiário”, sob o título “Partes diárias da polícia”, consta nota afirmando que no dia 13 “foram presos, à ordem do Exmo. Sr. Dr. chefe de polícia ‘alguns escravos’, que são citados, inclusive “Marcelo, de Caetano José Munhós” /.../ “por serem encontrados em um divertimento proibido”
(DD de 19.02.1870- p.3) Batuques e fandangos eram proibidos. A nota ainda afirma que Marcelo foi posto em liberdade no dia 16.
Em “Noticiário” se informa que no cartório do tabelião Nestor Borba foram registradas gratuitamente durante 1871 diversas cartas de liberdade passadas “sem ônus algum”, “condicionalmente” e “por compra de liberdade” (DD de 10.01.1872- p.3). Dentre estas últimas consta aquela concedida à escrava Graciana—do tenente coronel CJM.
ESCRAVO FUGIDO-
Caetano José Munhós gratifica a quem apreender o seu escravo de nome Justo, que se acha fugido há alguns dias, constando estar acoutado em uma casa desta cidade, fato contra o qual protesta proceder com todo o rigor da lei.
Curitiba, 20 de fevereiro de 1877 (o anúncio é publicado no DD de 21.02.1877- p.4, e republicado no DD de 24.02.1877- p. 4)
O nome de CJM também está associado a escravos em outra condição. Um dos documentos existentes no acervo do Arquivo Público do Paraná é assinado por CJM na condição de juiz municipal 2º suplente. Ele comunica ao presidente Zacarias a execução, em 20 de julho de 1854, às 16:00 horas, do réu escravo Joaquim, que assassinou seu senhor, Bento Alves Fontes, na fazenda deste, em S.José dos Pinhais. Anteriormente, o juiz de direito havia determinado ao juiz municipal que fizesse executar a pena de morte imposta ao réu, que deveria ser por enforcamento (cf. “Catálogo seletivo de documentos referentes aos africanos e afrodescendentes livres e escravos”, p. 27-29 e 33-34).
Dez anos depois, em 1864, conforme despacho publicado no “Dezenove de Dezembro” (seção “Expediente da Presidência” de 19 de outubro), a Presidência comunica ao Chefe de Polícia que ficou “ciente de terem sido entregues a João da Costa Cabral, encarregado pelo ten-cel Caetano José Munhós procurador de Bernardo Gavião & Ribeiro & Gavião, os escravos de nomes Modesto, Firmino, Salvador, Maurício, Samuel, Estolano, Clemente, Florencio e Juvencio, pertencentes aos frades carmelitas e arrendados por aqueles, a fim de serem conduzidos à província de S. Paulo” (DD de 5.11.1864- p. 2). Como se vê, até frades eram proprietários de escravos! (e isso ocorre em 1864, quando o tráfico já estava proibido e a consciência antiescravista nacional bem desenvolvida. Nessa época, outros países da América do Sul já haviam abolido a escravatura; por exemplo, a Colômbia em 1851 e a Argentina em 1853).
(Publicado na "Revista da Academia Paranaense de Letras" nº 54, abril de 2007)

CRUZ E SOUZA E OS PARANAENSES


Cruz e Sousa (1861-1898), o grande poeta brasileiro -- considerado a maior expressão do Simbolismo no Brasil, juntamente com Alphonsus de Guimaraens – contou em vida, e depois de morto, com o apoio e a dedicação de alguns escritores paranaenses, como mostram as informações biográficas levantadas por Andrade Muricy e R. Magalhães Júnior.

Emiliano Perneta (1866-1921), que muito o admirava, era em 1890 um advogado recém-formado e vivia no Rio de Janeiro dos parcos recursos que a atividade jornalística lhe proporcionava. Magalhães Jr. descreve (em “Poesia e Vida de Cruz e Sousa”, 3ª. ed., Civiliz. Brasileira/MEC, 1975) a precariedade da situação econômica de um grupo de jovens literatos, os primeiros simbolistas, residentes na então Capital Federal. Emiliano era redator-secretário da “Folha Popular”, e auxiliou Cruz e Sousa a obter emprego na imprensa carioca, viabilizando assim a sua mudança definitiva para o Rio de Janeiro, no final de 1890. Os dois integraram o primeiro grupo simbolista, nos quais se destacava, como figura mais conhecida, B. Lopes, dele fazendo parte também o catarinense Oscar Rosas, colega dos bancos escolares de Cruz e Sousa. Logo depois, Emiliano se transferiria para Minas Gerais, onde, graças à proteção do político João Pinheiro, ocuparia os cargos de promotor e juiz municipal, durante algum tempo, acabando por retornar ao Paraná, em 1895. Outro paranaense radicado no Rio, Emílio de Menezes (1867-1918), mantinha uma boa relação com o grupo simbolista, sendo inclusive citado, às vezes, como a ele pertencente. As relações entre Emílio e Cruz eram boas, tendo este se beneficiado, inclusive, da generosidade daquele. Mas como Emílio não se dava com seu concunhado Nestor Vítor, e pela sua maledicência, Cruz acabou afastando-se dele.

Todavia, foi com o parnanguara Nestor Vítor (1868-1932) que Cruz e Sousa conviveu mais. O crítico do Simbolismo, florianista, vice-diretor do Colégio Pedro II, era o amigo íntimo que conviveu com o poeta até o fim dos dias deste. Quando Cruz ainda residia em Santa Catarina, pouco antes de deixar Desterro (atual Florianópolis), em 1890, Nestor fez uma viagem àquela cidade só para visitá-lo. Ele percebeu a importância do poeta bem cedo, numa época inteiramente dominada pelo parnasianismo.

Dadas as suas relações com os partidários de Floriano Peixoto, foi provavelmente Nestor, segundo Magalhães Jr, quem ajudou Cruz a conseguir um emprego de arquivista na Estrada de Ferro Central do Brasil, emprego modesto, mas que, pelo menos, proporcionou ao poeta recém-casado uma remuneração
estável. Nestor foi solidário em todas as horas difíceis do poeta, que sofria as humilhações decorrentes do preconceito racial, a zombaria e o sarcasmo dos parnasianos, as dificuldades materiais, a insanidade temporária de Gavita... Quando a tuberculose se manifestou, de forma galopante, alguns meses antes da morte de Cruz, a dedicação de Nestor Vítor foi exemplar, como mostrou Magalhães Jr., que chama atenção para o fato. A doença o levou antes de Cruz completar 37 anos de existência, em 19 de março de 1898. Foi a Nestor Vítor que ele entregou os originais de “Evocações” (1898), “Faróis” (1900) e “Últimos Sonetos” (1905), todos publicados postumamente, graças aos esforços desse amigo fraternal, a quem o poeta dedicou, pouco antes de falecer, o comovente “Pacto de Almas”, um conjunto de três sonetos.

Os dois se completavam, pois enquanto Nestor era o pensador erudito, o crítico, Cruz se orgulhava da sua sensibilidade, chegando a afirmar certa vez: “não me orgulho do que sei, mas sim do que sinto” (R.Magalhães Jr, op. cit., p. 276).

Há um outro paranaense que, embora de uma geração posterior, também acabou associando seu nome ao do Cisne Negro. Trata-se de Andrade Muricy (1895-1984), autor do clássico “Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro”, em três volumes (INL, 1952). Muricy, que recebeu de Nestor Vítor o arquivo de Cruz e Sousa, reuniu na “Obra Completa” deste, publicado pela editora Aguilar, em 1961, muitas composições inéditas do poeta, que associadas àquelas descobertas posteriormente por Magalhães Jr. e integrantes de seu livro antes citado, constituem tudo o que se conhece da produção poética de Cruz. Aliás, coube a Andrade Muricy desfazer o mito de Cruz e Sousa “nefelibata”, alheio aos problemas de sua raça. Ele recolheu, na “Obra Completa”, vigorosas composições abolicionistas que, todavia, não foram incluídos nos livros pelos quais o poeta ficou conhecido certamente porque, segundo Muricy, perderam a significação, após ser declarada a abolição da escravatura, em 1888 (lembremos que os únicos livros publicados em vida do poeta, “Missal” e “Broquéis” – se excetuarmos “Tropos e Fantasias”, em parceria com Virgílio Várzea --, só o foram em 1893. Aqueles livros assinalam, como se sabe, o início do Simbolismo entre nós). Mas mesmo a obra publicada não era tão alheia assim à problemática social dos sofredores, negros e pobres... como se vê na “História Concisa da Literatura Brasileira” de Alfredo Bosi.

Do grupo de amigos próximos a Cruz, no final da vida deste, fez parte ainda o morretense, radicado no Rio de Janeiro, Silveira Neto (1872-1942), o futuro autor de “Luar de Inverno”. Ele era pai do poeta curitibano Tasso da Silveira (1895-1968), estudioso e admirador da obra do Cisne Negro.

Um contemporâneo nosso, Paulo Leminski (1944-1989), também revelou-se admirador do “negro branco”, escolhendo-o como tema de um livrinho instigante lançado em 1983 pela Brasiliense, na coleção Encanto Radical. Nele, Leminski chama a atenção para a modernidade contida nos versos singulares do grande poeta catarinense.
(Publicado no "Jornal da Biblioteca" nº 6, dez. 2005)