sábado, 29 de agosto de 2009

UM SONETO DE BAUDELAIRE




Vou me ocupar, neste artigo, de um poema de Charles Baudelaire, acrescentado à 3ª. edição (póstuma) das “Flores do Mal” e que já foi considerado o melhor soneto do Poeta (1). Aliás, o soneto foi a forma fixa que ele adotou para compor grande número de poemas daquela coletânea.
“Recolhimento” ("Recueillement") foi publicado pela primeira vez em 1861 e acredito que seja uma boa amostra da poesia baudelaireana. Segundo sua concepção, a poesia não tem outro objetivo senão ela mesma. Consiste numa atividade lúdica. Para ele, a poesia não está marcada pelo utilitarismo presente em todos os aspectos da sociedade capitalista, embora tivesse consciência dos novos tempos, da “perda da auréola” do poeta que, para sobreviver, também tinha que vender a sua “mercadoria” (cf. “La Muse Vénale”). Sua postura estética, por outro lado, serve de alerta a um certo tipo de engajamento poético, pois é sabido que um poema não se faz só com a apresentação de idéias nobres e altruístas: é preciso isso e alguma coisa mais ... que se chama poesia.
O soneto, composto em versos alexandrinos, é concebido como um monólogo, onde quem fala é o Poeta, dirigindo-se à sua Dor, um “alter ego” alegórico, na forma de uma mulher, amiga ou amante, a quem ele dá conselhos e mostra o entardecer.
Na primeira quadra o Poeta aconselha à sua Dor a ser bem comportada, e a ficar mais tranqüila. Chegou o entardecer que ela reclamava e já uma certa obscuridade envolve a cidade, “trazendo paz a uns, a outros, inquietude”.
Ele (sua Dor) se inquieta com o cair da Tarde devido aos impulsos dionisíacos e à atração da exploração do potencial de prazeres da noite, cuja vinda, por isso, é desejada. A Dor recebe então o conselho do v. 1, conselho dado pelo lado “sage”, apolíneo, do Poeta, aquele que fica em paz no entardecer e, no seu recolhimento, constata, distante, como se isso não lhe dissesse respeito também, a divisão das pessoas nessas duas categorias – as que ficam inquietas quando anoitece e as que não ficam.
Trava-se assim um conflito interior no artista (como todo homem vítima do pecado original, na concepção baudelaireana), dividido entre a Matéria e o Espírito, entre o Mal e o Bem, entre o Diabo e Deus, tensão presente em muitos poemas das “Flores do Mal”, marcados por profundo sentimento de religiosidade, onde o satanismo nada mais é do que um disfarce, de quem quer entrar no cristianismo pela porta dos fundos, como disse T.S.Eliot (2).
Há um outro aspecto nessa estrofe que merece menção: trata-se da referência à cidade (v.3). Baudelaire, como precursor da modernidade, é um poeta urbano, o que é ilustrado pelos “Tableaux Parisiens”, uma das seis seções em que se divide a sua obra principal. A cidade é o “locus” privilegiado de seus poemas e até mesmo as transforamções urbanísticas da Paris do Segundo Império estão neles registradas (cf. “Le Cygne”).
Na segunda quadra do soneto, o Poeta pede para a Dor dar-lhe a mão e vir para junto dele, afastando-se da “multidão vil dos mortais, que sob o chicote do Prazer –esse carrasco implacável – vai colher remorsos na festa servil”.
A multidão aqui é encarada como elemento hostil, embora isso nem sempre ocorra na poesia de Baudelaire, como assinalou Walter Benjamin (3): ela é normalmente intrínseca à sua poesia, é ela que proporciona a visão fugaz da adorável mulher de luto em “À une Passante” ou o motivo humanista para “Les Petites Vieilles”. Em “Recolhimento”, como uma decorrência do próprio tema, a multidão aparece apartada do Poeta, e digna de desprezo, o mesmo desprezo que a parte nobre de si (imortal) confere ao seu lado inferior (mortal), que se inclina para o mal e o pecado, conforme a sua visão de mundo.
Vão os mortais, então, subjugados pelo Prazer (cf. a maiúscula alegorizante), para a “festa servil”, digna de servos e não de senhores, festa dos prazeres vulgares, da mesa e da cama, que produzirão posteriormente remorsos, ou seja, a reprovação da consciência moral (o remorso foi associado, em outros poemas, à imagem do verme, “nutrindo-se de nós como o verme dos mortos”, conforme “L’Irréparable”). O Poeta constata, desse modo, a busca desesperada do Prazer, própria da condição humana, destinada a abrandar a sua miséria: já no poema-prefácio ao seu livro, refere-se a tal busca, comparando o prazer, que “nous pressons bien fort”, a uma laranja, e o homem, nessa busca insaciável, a um pobre devasso que “beija e suga o seio martirizado de uma velha prostituta” (cf. “Au Lecteur”, quinta estrofe).
Por outro lado, a alegoria do Prazer, com seu chicote, açoitando os “mortais”, pode sugerir relacionamento sado-masoquista que, mais sutilmente, está presente, ao menos quanto ao aspecto do sadismo, em alguns poemas das “Flores do Mal”. Também aí se aborda o lesbianismo, um dos motivos para o processo que lhe foi movido à época de seu lançamento.
O Poeta procura assim superar a sua própria condição, distanciando-se dos seus semelhantes e tornando-se senhor de sua própria liberdade ao rejeitar os prazeres aos quais está, pela natureza (a do pecado original), condicionado, a fim de encontrar-se com a sua dimensão mais nobre na solitude e no recolhimento.
Destaque-se uma particularidade nessa passagem do soneto: a mudança de ritmo do v.8 em relação aos precedentes, com o objetivo de salientar a separação, que se quer ver aprofundada, entre sua Dor, que ele chama a si, e a “multidão vil dos mortais”, o que fica bem evidenciado pelo “enjambement” aí presente.
Nos dois tercetos, o Poeta pede, no seu recolhimento, para a Dor ver: a) os Anos passados (“Années”, palavra feminina em francês, o que permite essa personificação) debruçarem-se nas varandas do céu, em vestidos antiquados; b) surgir do fundo das águas a Saudade sorridente; c) dormir, debaixo de uma arcada, o Sol moribundo; e pede para ela ouvir a suave Noite que caminha, após comparar esta com uma ampla mortalha arrastada no Oriente.
Desse modo, o recolhimento, levando o Poeta à auto-consciência e às questões mais fundamentais, que não são normalmente levantadas na convivência social, suscita nele, como uma decorrência natural, a evocação de seu passado -- materializada pela imagem das damas (“les Années”) debruçadas nas sacadas do céu, em vestidos fora-da-moda -- , do que resulta vir à tona, em seu íntimo, o sentimento (doloroso) associado a certas vivências pessoais e o pesar pela passagem do tempo, enfim a Saudade, que aflora à superfície com seu sorriso consolador.
A Dor também é solicitada a ver o Sol moribundo se aninhar sob uma arcada ou, mais precisamente, sob um “arco de ponte” ( “arche” também tem esse significado em francês, segundo os dicionários). Compara-se assim o Sol se pondo ao vagabundo que se aninha debaixo da ponte para dormir. Essa é mais uma imagem de nítida inspiração urbana presente na obra.
A Dor foi solicitada a ver, nos versos anteriores, em que se criam elementos plásticos destinados a proporcionar uma equivalência visual à memória do passado e ao sentimento da saudade. Essa ênfase, aliás, quanto ao aspecto plástico é uma das características mais marcantes da poesia de Baudelaire (recorde-se que ele foi também crítico de arte). No último verso, celebrado por sua beleza, a Dor é solicitada a ouvir a Noite avançando. A sinestesia, i.e., a relação subjetiva entre diversas percepções dos sentidos, é outra característica baudelaireana, que a ela recorre freqüentemente. Conforme seu famoso soneto “Correspondances”, fundamental para o Simbolismo (4), “les parfums, les couleurs et les sons se répondent”, expressando assim uma harmonia universal existente neste mundo, reflexo do outro, de modo que aos perfumes, por exemplo, corresponderiam cores e sons. Assim, Baudelaire embaralha intencionalmente os sentidos da audição e da visão, no último verso, produzindo com isso uma rica e sugestiva impressão poética.
Verifica-se, nos tercetos, uma progressão do mundo interior (a evocação do passado, a saudade) para o exterior (o pôr-do-sol, a noite). Ao mesmo tempo, à melancolia decorrente da consciência da passagem do tempo vai se associando, imperceptivelmente, a idéia de morte – uma das obsessões das “Flores do Mal” – à qual está ligada a imagem da Noite (5). É interessante destacar que alguns vocábulos empregados nos tercetos já possuem uma conotação fúnebre, preparando o clima para o verso final: “défuntes” (defuntos, v.9), “moribond” (= moribundo, v.12) e “linceul” (= mortalha, v. 13). A Dor (o Poeta) reclamava o anoitecer – promessa de prazeres – e eis que a Noite se aproxima. O desejo de morte do Poeta será atendido em breve, pois sua vida, como a de todos os homens, está marcada pelo signo da efemeridade.
Por outro lado, os elementos da natureza que estão presentes também contribuem para preparar a ambientação do último verso. Nos tercetos, ocorrem referências a “ciel” (= céu, v.10), “eaux” (= águas, v. 11) e “Soleil” (= Sol, v. 12), antes de menção à “Nuit” (= Noite), no v.14.
Ainda uma observação a respeito do verso final. Como assinala Guilherme de Almeida (6), Baudelaire, ao repetir “entends” no último verso, visa alongá-lo, a fim de sugerir o caminhar vagaroso da Noite. Além disso, acrescento eu, a utilização de uma “rime féminine” (“marche”), em que há uma sílaba átona após a décima-segunda sílaba do alexandrino, reforça a idéia de que a Noite ainda não chegou inteiramente, de que está chegando, produzindo-se assim sugestão de continuidade.


(1988)

NOTAS

(1) Baudelaire- “Les Fleurs du Mal”- poèmes choisis présentés par Marcel Galliot- Librairie Marcel Didier, 1961- p.91. O soneto é o seguinte, em sua versão orginal e respectiva tradução para o português:





RECUEILLEMENT

Sois sage, ô ma Douleur, et tiens-toi plus tranquille.
Tu réclamais le Soir; il descend; le voici:
Une atmosphère obscure enveloppe la ville,
Aux uns portant la paix, aux autres le souci.

Pendant que des mortels la multitude vile,
Sous le fouet du Plaisir, ce bourreau sans merci,
Va cueillir des remords dans la fête servile,
Ma Douleur, donne-moi la main; viens par ici,

Loin d’eux. Vois se pencher les défuntes Années,
Sur les balcons du ciel, en robes surannées;
Surgir du fond des eaux le Regret souriant;

Le Soleil moribond s’endormir sous une arche,
Et, comme un long linceul traînant à l’Orient,
Entends, ma chère, entends la douce Nuit qui marche.
Charles Baudelaire, 1861

RECOLHIMENTO

Sê sábia, ó minha Dor, e fica mais tranqüila.
O Entardecer que tu pedias já está aí:
Uma incerta penumbra cai sobre a cidade,
Trazendo paz a uns, a outros, inquietude.

Enquanto a multidão mesquinha dos mortais,
Sob o chicote do Prazer – esse algoz frio,
Vai colher só remorsos na festa servil,
Minha Dor, dá-me a mão; vem p’ra cá, longe deles.

Observa debruçarem-se as Horas defuntas
Nas varandas do céu, em vestidos de outrora;
Surgir das águas fundas a Saudade, sorrindo;

Dormir, sob uma arcada, o Sol agonizante,
E, como ampla mortalha arrastada no Oriente,
Ouve, querida, a suave Noite que vem vindo.

(tradução: Domingos van Erven)

(2) Baudelaire, Charles- “As Flores do Mal”- trad., introd. e notas de Ivan Junqueira- Ed. Nova Fronteira, 1985, p. 64

(3) Benjamin, Walter- “Sobre Alguns Temas em Baudelaire” in “Os Pensadores”- Abril Cultural, 1980- p. 38

(4) Baudelaire- “As Flores do Mal”- trad., introd. e notas de Jamil Almansur Haddad- Abril Cultural, 1984- p. 43

(5) “Baudelaire”- Classiques Larousse- avec une Notice biographique, une Notice historique et littéraire, des Notes explicatives etc par A. Cart e S.Hamel- p. 60; cf. também Lagarde, A. e Michard, L.—“XIXe. Siècle”- Bordas, 1983- p. 449

(6) Almeida, Guilherme de- “Flores das Flores do Mal”- introd. de Manuel Bandeira- Ed. de Ouro, 1965, p. 163

SOBRE A POESIA DE "BRISAIS"


Não é todos os dias que surge, no horizonte das letras, um livro de poemas como “Brisais”, de Jaques Brand (Curitiba, Fundação Cultural de Curitiba, 1997). Há muito o autor devia essa estréia-em-livro aos seus amigos/admiradores, que já o conheciam dos jornais literários, e publicações esparsas. Tem-se agora a oportunidade de avaliar, de forma mais sistemática, uma produção poética de alto nível, cujas características essenciais tentarei apontar neste rápido comentário.
A primeira delas, e mais evidente, diz respeito à poesia encarada como atividade lúdica. O poeta constantemente brinca com as palavras, explorando todo o potencial sonoro oferecido por elas, e suas variantes. Explora não só o recurso lúdico tradicional da rima, esporadicamente, mas também as aliterações, assonâncias e repetições. Vale-se do trocadilho (“Un coup de dendê/ jamais n’abolira/ Eleazar”, p.74, uma brincadeira com Mallarmé e os baianos Caetano e Gil), dos jogos sonoros (“Almas gêmeas/ algemas/ alfazemas”, p.50 ), da fusão de palavras, criando outras, inexistentes ( v. Leminski, p.75: “Samurandarim, mandamurai!”), do palíndromo (“Alessos”, p.81, uma brincadeira com o nome do poeta Sossela), da tradução “só dos sons” de alguns versos de Homero, Poe e Dante, criando novos poemas, mas equivalentes no ritmo. Ver por exemplo este, apoiado no primeiro verso da “Divina Comédia”: “o vezo carmesim da ostra esquiva/ nel mezzo del cammin di nostra vita” (p.82). A tradição poética deixa de ser alguma coisa distante e acadêmica, para ser íntima e contemporânea, na informalidade com que é tratada.
Mas a poesia de “Brisais” também pode ser utilitária, interessada, quando exerce a reflexão crítica sobre a realidade. Isso ocorre quando critica a dependência da nossa economia à soja (“A soja de porto afora”, p.35), a situação política (“ Os regimes no Brasil”, p.41) ou as igrejinhas literárias (“Guinski”, p.78), revelando uma outra maneira de fazer poesia. Nela, a intenção crítica predomina sobre o impulso lúdico.
Em “Brisais” todos os assuntos são temas para a poesia. Não há temas mais “poéticos”, ou menos. Embora haja temas tradicionais, como o do “Soneto à maneira do décimo sétimo século” (p.63), eles geralmente referem-se ao quotidiano do poeta, que não teme mesmo aqueles corriqueiros, ou banais (v. “Soneto para Otávio Duarte”, p.23, “Libador”, p. 67). A rigor, apenas um tipo de tema está excluído, os metafísicos, o que é explicado em “Franciscos”, p. 70: “Mas se é do campo a graça,/ a fermosura,/ pra quê me procurar/ vida segura?”. Só interessa ao poeta o mundo fisico, não o metafísico. Nele, a fruição amorosa é um aspecto preponderante (como também o era para Vinicius de Moraes). Permanentemente, o poeta “aos domos altos da cidade fria,/ aos domos sobe onde os pomos tem” (p. 59). “Brisais” , na realidade, é um volume formado por cinco livros, que agrupam: 1) poemas que se voltam para a própria criação poética (como o belo “Meu lado alado”, p. 21); 2) aqueles em que sopram as “brisas do Brasil”; 3) os que tratam do desfrute amoroso; 4) os poemas de circunstância, ou inspirados pelas passagens mais vivas dos clássicos (“glosas, mantras e chicletes”); e 5) aqueles traduzidos, ou melhor, recriados.
Uma outra particularidade dessa produção poética é o seu caráter textual, gráfico.“Brisais” revela não só uma obsessão sonora mas também gráfica, como se verifica na auto-definição étnica do poeta (e nossa): “afro indo pindo europ’ eu” (p. 31), constituindo esse “eu” o segundo, e último, verso. A mesma preocupação pode ser constatada em “Latifúndio” (p.37), em que os dois pontos sugerem cabeças de boi no pasto ermo. Também está presente no experimentalismo de “Cem empregos amorosos” (p. 60), onde não há versos propriamente, mas sugestões propiciadas por fragmentos das palavras-título, no concretismo de “Jornada” (p.36), na singularidade de “Proporção” ( no qual a associação de uma propriedade matemática ao X dos remos cruzados é suficiente para constituir o seu conteúdo!), em “A vaca diagramada”, p.20, e na escrita peculiar de o viñ e a liñ, na tradução de Ben Jonson, p. 103.
Muito da poesia de “Brisais” é conscientemente resultante da poesia de outrem. O real é intermediado, com frequência, por sua expressão literária, nos momentos mais vivos e requintados das obras clássicas. E alguns poemas elaboram essas passagens privilegiadas, transformando-as em composições novas e pessoais (v. “Algum lugar em Shakespeare”, p.57, a partir de uma passagem do “Coriolanus”, “A rã de Bashô”, p.73, resultante do “hai cai” famoso do poeta japonês, e “Inferno, I, 1-3”, p.85, pois Dante é presença obrigatória no mantra recorrente entoado pelo poeta curitibano. Constata-se aqui até mesmo uma colagem, “Franciscos”, que é composta pela junção de dois versos, provenientes de dois sonetos seiscentistas, um de Francisco Rodrigues Lobo e outro de Francisco Manoel de Mello, do que se origina um novo poema. Capítulo à parte, nesse aspecto, refere-se às traduções, muito livres, pois o compromisso maior do poeta não é o de traduzir fielmente o original, mas o de exprimir a sua reação pessoal frente a ele.
Nos poemas, não há a opção por uma determinada linguagem. Todas elas são usadas, desde o português castiço (“Teu estro alado/ empece que pasça ao prado (...)”, p.21 ) até a linguagem coloquial quotidiana (incluindo termos de gíria ou vulgares) e palavras estrangeiras, empregadas com frequência, que se integram naturalmente na composição (v. “Anabasis, Xenofonte”, p.68, cujo primeiro verso é formado apenas pela palavra “thálassa!”(mar, em grego), repetida uma vez). Também os neologismos ocorrem, já no próprio título do volume, respondendo às exigências fonéticas dos poemas, o que explica também o livre emprego dos termos estrangeiros. Tudo é válido, desde que funcional para a linguagem da poesia, que se materializa em sons, palavras e signos gráficos.
Do mesmo modo, não há uma única forma adotada. Todas elas são empregadas, desde o soneto clássico até a crônica memorialista ( “Essas neblinas”, p.42). Predominam todavia os poemas breves, de grande economia verbal, embora isso também seja colocado em xeque pela presença de “À guisa de depoimento”(p. 45) no volume, uma experiência de colocar em tercetos um depoimento de Juarez Távora, que poderá constituir-se em um poema longo, no futuro. Assim, no livro, como na vida, o que vale é a multiplicidade das experiências.
A poesia de “Brisais” é alegre, não se encontram nela as queixas habituais dos poetas relativamente à precariedade da condição humana, à passagem do tempo, à morte. Há a presença do humor em “Texturaria Bom Pastor”, p.22 (uma sátira à atividade do poeta como redator “free lance” de textos publicitários, trocadilhando com “tinturaria”), no “Soneto para Otávio Duarte”, em “The raven”, tradução, “só dos sons”, de uma estrofe inicial do “Corvo” de Poe, em que o protagonista é ameaçado pelas sombras das sogras, mãe de suas “vítimas”, e em “Compromissos” (p.44), no qual afima, após declarar seu compromisso prioritário com a vida: “Prefiro, menestrel/ de beira & borda,/ roer, como um de Roma/ rato, a Corda.” “Roer a Corda” é um coloquialismo a mais no livro, e Corda, com letra maiúscula, adquire a condição de símbolo, modo de grafar que também ocorre com outras palavras, em outros poemas.
A poesia de “Brisais”, que tem um lado utilitário, se apresenta contraditoriamente (dialeticamente) “sem mensagens”. Descreve-se uma situação, fixa-se um instantâneo da vida, sem se extrair a “moral da história”. Ver por exemplo “The Opium War” (p.34) ou “Treva leva” (p.61). Na concepção do autor, os poemas são “obra aberta”, repercutindo diversamente nos leitores (“Onde tanjo um Sol/ ouvem lá que é um Fá/ e se solo um Lá/ falam só que é um Si”, p.18), produzindo neles impressões diferentes, que variam de pessoa a pessoa, como quando se observam as nuvens do céu (p.18,II).
Em suma, a poesia de “Brisais” é sinônimo de vida. É um exercício lúdico, sem deixar de ser utilitário. Experimenta todos os temas, todas as formas, todas as linguagens. Experimenta não só os sons, mas também os signos gráficos. É original, mas também é de outrem. Expressa uma disposição alegre de espírito, que também é esperança. Por tudo isso, na calmaria presente, essas brisas são muito bem-vindas.
(Publicado na "Gazeta do Povo" de 16.02.1998- Caderno G, p.2)

OS RICOS SÃO DIFERENTES DE NÓS?


“The Great Gatsby”, lançado em 1925, é considerado geralmente como o melhor livro de F.Scott Fitzgerald (v. foto). Trata-se, de fato, de uma obra-prima, que nos permite conhecer um pouco a sociedade americana da década de 1920, especialmente a alta burguesia, o mundo de Gatsby, Daisy e Tom Buchanan, e também, indiretamente, o daqueles que dependem de seu trabalho para viver, representado por Wilson, que tem uma oficina mecânica de beira de estrada, naquilo que o autor chama, expressivamente, de “vale das cinzas”.


Para além dos aspectos externos dos “roaring twenties”, visíveis nos signos de modernidade (ver, por exemplo, a importância do automóvel na novela) e nas festas colossais promovidas por Gatsby nos jardins de sua mansão, ao som de muito jazz, perdura a tensão entre aqueles dois mundos. Ela se encontra latente no relacionamento entre Tom e Wilson, na arrogância de um e na atitude subjugada e dependente do outro, que será mais marcante para o leitor ao saber que Wilson é enganado pela mulher, Myrtle, amante de Tom. A revolta de Wilson só se concretizará, assim, em função de seu drama pessoal: equivocado, assassinará Gatsby (e em seguida se matará) por atribuir a este a autoria do atropelamento e morte de sua esposa. Mas quem de fato dirigia o luxuoso carro amarelo de Gatsby não era este e sim Daisy, que não pára no local do acidente e nem assume a sua parcela de responsabilidade por ele, deixando, por omissão, que Gatsby assumisse inteiramente a culpa.

Gatsby, desse modo, é vítima das circunstâncias sobre as quais não tem controle, que o dinheiro (abundante) que possui não compra, embora compre muitas outras coisas, como aquelas destinadas a impressionar Daisy e para mostrar a si mesmo que ele agora é rico e possui o mesmo “status” social dela, o que não ocorria quando travaram conhecimento. Não importa aqui a origem suspeita dessa fortuna (pois ela resultava, seguramente, do comércio ilegal de bebidas, durante a Lei Seca); afinal todas ou a maioria das fortunas têm origem questionável do ponto- de- vista ético. Para ele, o que importa é o sonho que alimenta há cinco anos e condicionou todas as suas ações nesse período, que faz “o mundo material ser real”. E quando esse sonho acaba, quando Gatsby percebe que não pode mais repetir o passado, não há mais razão para que ele continue existindo, como disse um crítico. Assim, a morte desse homem que alcançara o sucesso representa, ao mesmo tempo, um fracasso: o do sonho americano, que só acredita na acumulação material crescente como fonte de felicidade pessoal.

Essa é a concepção no mundo de Daisy, de Tom e de todos aqueles notáveis das colunas sociais que freqüentavam, numa busca desesperada de prazer, as festas de Gatsby mas que não comparecem ao seu enterro, o que causa a indignação de Nick, o único a comparecer, juntamente com o pai do falecido, e alguns mais. Nem mesmo Daisy comparece, nem manifesta, de alguma forma, o seu pesar, se é que ele existe. Aliás, essa personagem é enigmática (como a Capitu, de Machado), embora fique claro que ela é um produto de sua própria classe social: a sua frivolidade, a sua inconseqüência, a sua falta de substância humana são aspectos coerentes com a teoria de Fitzgerald de que “os ricos são diferentes de nós” (ao que Hemingway teria respondido, jocosamente: “sim, têm mais dinheiro do que nós”). Daisy, cuja voz é caracterizada por Gatsby como “full of money”, expressa bem o profundo tédio, decorrente da faustosa ociosidade dos membros de sua classe, quando afirma: “What’ll we do with ourselves this afternoon? (...) and the day after that, and the next thirty years?”. Por outro lado, já no final da novela, depois que tudo aconteceu, o narrador comenta: “They are careless people, Tom and Daisy – they smashed up things and creatures and then retreated back into their money or their vast carelessness, or whatever it was that kept them together, and let other people clean up the mess they had made…

A estrutura formal da novela concebida por Fitzgerald é a mais adequada para a história que quer contar: a adoção de um narrador, que se debruça sobre os fatos do passado recente, suscita um interesse crescente por aquela figura singular, misteriosa, apresentada aos poucos, inicialmente pelas histórias que circulam a seu respeito. Esse recurso técnico funciona adequadamente para contar a tragédia desse sonhador que viveu num mundo excessivamente prosaico e que só era efetivamente compreendido pelo seu amigo e vizinho. Há uma passagem em que Nick afirma ser Gatsby “melhor do que todos os outros juntos” e esse é o único elogio que, em vida, lhe fez o narrador da história, convicto, apenas no final, da sua qualidade humana e moral. Era um sujeito riquíssimo e no entanto solitário; de origem humilde, ascendeu socialmente mas não se integrou, de fato, à nova classe a que tivera acesso, por ser, sua natureza, muito diferente da dos outros integrantes dessa classe.

É curioso salientar que são justamente os únicos homens apaixonados da novela (Gatsby e Wilson) aqueles que morrem, como a mostrar, simbolicamente, que a realidade em que vivem é incompatível com o sonho.

Toda essa história é contada numa linguagem muitas vezes poética, de rara beleza, como quando Wilson se aproxima da casa de Gatsby e é identificado com a Morte, após o desencanto de Gatsby com Daisy: haveria agora “a new world, material without being real, where poor ghosts, breathing dreams like air, drifted fortuitously about... like that ashen, fantastic figure gliding toward him through the amorphous trees.” Um outro exemplo da qualidade de sua prosa ocorre quando descreve, com muita delicadeza, algumas meninas brincando, ao por-do- sol, “gathered like crickets on the grass.”

Um aspecto a destacar ainda diz respeito ao simbolismo de certos elementos da história como os “olhos do Dr. T.J.Eckleburg” (um “out door” abandonado, anunciando óculos), que para Wilson são os olhos de Deus, “que tudo vê”, presentes permanentemente no “vale das cinzas”, que por sua vez tem toda uma carga simbólica, associada à própria condição humana. O mesmo ocorre com a “luz verde”, na extremidade do ancoradouro, próximo à casa de Daisy, do outro lado do estreito, que é freqüentemente observada por Gatsby, à noite, e simboliza todas as suas aspirações e planos para o futuro, jamais realizados.

Percebe-se assim que o livro tem muito mais a oferecer do que a sua banalização televisiva ou cinematográfica permitiria supor. Trata-se de uma obra fundamental na literatura americana do século XX, que todas as pessoas sensíveis à beleza literária não podem desconhecer.