terça-feira, 30 de novembro de 2010

DALTON TREVISAN & O PARANISMO



Há um livro interessante na praça. Trata-se de Dalton Trevisan (en)contra o Paranismo (Curitiba: Travessa dos Editores, 2009), onde Luiz Cláudio Soares de Oliveira faz uma análise da revista Joaquim, de literatura e artes, lançada em Curitiba pelo jovem Dalton Trevisan, em 1946.

Joaquim, que recebeu elogios de grandes escritores nacionais, representou um marco na história cultural do Paraná, por atacar a visão passadista, conservadora e isolacionista que aqui prevalecia no terreno das letras e das artes (associada pelo autor ao “Paranismo”) e propor uma abertura para o que fosse mais relevante no mundo de então, o do pós-guerra. Assim, Joaquim, teria em nosso meio uma importância equivalente à da Semana de Arte Moderna no âmbito nacional.

A proposta de trabalho desse livro, originalmente uma dissertação de mestrado apresentada na área de Letras da Universidade Federal do Paraná, “é apresentar e analisar as ‘armas’ utilizadas pelos editores e colaboradores da Joaquim para vencer as forças antagônicas locais, receber o apoio nacional e, com isso, ficar caracterizada como um marco, uma ‘ponta’ histórica da vida cultural paranaense”. (p.11)

Para alcançar o seu objetivo, o autor destaca -- em sua análise dos 21 números da revista (que saíram de abril de 1946 a dezembro de 1948) -- alguns aspectos do conteúdo dessas edições, mais relacionados àquela proposta de trabalho, qual seja o do seu confronto com o Paranismo.

Assim, o autor se concentra em analisar as ideias norteadoras da revista, contidas no “Manifesto para não ser lido”, um conjunto de citações de vários escritores, publicado no nº 1, antecedido por uma frase-divisa formulada pela própria revista, que justificava o seu nome e seria repetida nas demais edições: “Em homenagem a todos os joaquins do Brasil”. Analisa também a crítica a Emiliano Perneta (no nº 2- “Emiliano, poeta medíocre”), a crítica a Alfredo Andersen (no nº 7—“Viaro, hélas... e abaixo Andersen”) e o artigo “A geração dos vinte anos na ilha”, publicado no nº 9, uma crítica ao Paranismo e aos “donos da arte no Paraná”, um “verdadeiro manifesto antiparanista”, como o define o autor (p. 147). Examina ainda a seção “Oh as idéias da província” e a publicidade da revista.

Luiz Cláudio propõe-se analisar as armas usadas pela revista para “bombardear a cultura ideologicamente dominante que se impunha no Estado há mais de meio século.” (p.11). Esse meio século anterior a Joaquim abrange basicamente os movimentos simbolista e paranista, pois o Modernismo aqui foi muito pouco significativo.

No movimento simbolista, cujo auge ocorreu nos fins do século XIX e começos do XX, Curitiba destacou-se como um dos principais centros do país, como mostrou Andrade Muricy no “Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro” (por isso é absurda a afirmação, contida no manifesto antiparanista antes referido, de que “(...) a literatura paranaense inicia agora” (p.147), i.e. na década de 1940, fazendo tabula rasa de toda a nossa história literária anterior à revista).

O Paranismo, por outro lado, que tem como referência cronológica a criação de um “Centro Paranista” pelo historiador Romário Martins em 1927 (p. 40), não é originalmente um movimento artístico, e sim de caráter cívico, de valorização das coisas nossas, certamente intensificado pela exaltação de ânimos decorrente das discussões com Santa Catarina que se arrastavam no âmbito do Judiciário relacionadas à questão do Contestado e que resultaram no acordo de 1916 pelo qual o Paraná perdeu 28 mil km2 de seu território. Liderado por Romário Martins (1874-1948)-- que aliás contribuiu para a defesa judicial dos interesses do Estado—o movimento voltou-se para a valorização da terra e da gente do Paraná, título aliás de um de seus livros.

Quanto à gente, valorizava não só os nativos daqui mas também aqueles que escolheram o Paraná para viver. Ocorre que, o viés elitista da época não valorizava a gente do povo (os joaquins...) e sim as personalidades notáveis nas diversas áreas-- política, militar, administrativa, eclesiástica etc, incluindo naturalmente a literatura e apropriando-se assim daqueles escritores que alcançaram projeção nacional no tempo do Simbolismo. Todas essas personalidades, não é preciso dizer, saíam em sua maioria das classes dominantes locais. Como bem assinala o autor, os negros e os índios, especialmente aqueles, foram esquecidos (p 43) nesse culto das personalidades locais (que não era estranho às concepções positivistas...).

Quanto à terra, o movimento paranista se voltava para o elogio dos nossos recursos naturais, dos acidentes geográficos, da nossa fauna e flora, na qual se destacava o pinheiro, que Emiliano um dia -- num de seus raros versos explicitamente regionalistas -- comparara a “uma taça erguida para a luz”. O pinheiro, a pinha, o pinhão tornar-se-iam assim símbolos, e seriam exaustivamente explorados, não só no terreno da literatura mas também no das artes plásticas e arquitetura, como uma decorrência da postura paranista. O Paranismo, desse modo, derivando para o campo das artes, restringia e tornava acanhadas as perspectivas da nossa produção literária e artística. Nesse sentido, o papel de Joaquim, apesar das injustiças que cometeu, foi muito importante para alargar os horizontes dos escritores e artistas locais.

Mas é preciso deixar claro que, em termos de ideário estético, Simbolismo não tem nada a ver com o Paranismo. É a própria negação deste, na medida em que é universalista, cosmopolita, antirregionalista. Emiliano Perneta, por exemplo, tinha a cabeça voltada para Paris, era assinante do “Mercure de France”, e menosprezava a província, que chamava de “país de bárbaros”. Além disso, o Simbolismo é considerado precursor do Modernismo, pela sua crítica ao formalismo parnasiano e seu ímpeto renovador da linguagem, inclusive com a valorização do seu aspecto gráfico (os simbolistas por exemplo foram contra uma reforma ortográfica que aboliu o y da palavra lírio: para eles seria sempre “lyrio”). Paulo Leminski, em seu livro sobre Cruz e Sousa, chamou a atenção para a valorização desse aspecto gráfico nas esmeradas publicações deles.

Luiz Cláudio diz que o movimento simbolista foi mais duradouro (que o nacional), no Paraná “continuando forte até a década de 20 do século XX, arrefecendo apenas depois da morte de Emiliano, em 1921, período em que começa a tomar força a idéia do Paranismo como se fosse não um substituto, mas uma resultante, um legado dos simbolistas” (p.34)

Paranismo legado dos Simbolistas? Não há nada mais distinto dele, como disse acima. Mas o autor não considera esse “legado” do ponto- de- vista das idéias estéticas, e sim da postura do grupo de escritores que lançou a revista Cenáculo e expressava “o anseio de construção de uma identidade e produção culturais próprias, que enfrentassem o cosmopolitismo da capital (Rio de Janeiro), que nos ‘avassalava’ “ (p 29). Escritores que os sucederam, das gerações posteriores, mas com o mesmo anseio, seriam os “donos da arte no Paraná” da década de 1940 visados por Joaquim...

O Paranismo levou seus adeptos a cometer exageros como o da atitude do jornalista Raul Gomes que, numa matéria publicitária, destinada a promover a venda de livros paranaenses (dos quais também era editor) achava que era uma obrigação moral do paranista adquirir livros de autores nossos, mesmo que maus. “Ele pode ser mau. Mas é nosso” afirmou (p 56). Em outra ocasião, citando um escritor francês (“Ce verre c’est à verre mais c’est moi”), afirma sobre os nossos literatos: “maus, mas nossos!” (p 90). Essa era obviamente uma atitude equivocada, que não contava nem mesmo com o apoio unânime dos paranistas...

Defender o “mau mas nosso” em artes é uma rematada estupidez. No terreno das artes, é preciso ser implacável com a exigência de qualidade. Não tem sentido predefinir uma temática regional à produção artística (como acabou ocorrendo pela adoção de uma visão distorcida do Paranismo, que se bem entendido não é em si um mal). Como diz o manifesto antiparanista de Joaquim: “Nossa geração (...) jamais fará arte paranista, no mau sentido da palavra. Ela fará simplesmente arte” (p 147). Tampouco tem sentido optar pela mera imitação dos artistas do passado bem sucedidos, em vez de buscar a inovação e a criatividade. Na atualidade, um exemplo de tal postura equivocada seria um contista querer imitar o estilo literário de Dalton Trevisan...

Um aspecto interessante levantado por Luiz Cláudio em seu livro diz respeito à instabilidade da opinião de Dalton com relação a Viaro. Em Joaquim ele o elogia; depois, na maturidade, o critica, dizendo de sua pintura: “bem comportada, reacionária, nenhuma originalidade. Diria até acadêmica, se ele soubesse desenhar” (p 127). Não importa aqui se Dalton, como diz o autor, quis fazer “crítica ao oficialismo provinciano” (na época da sua crítica, em 1984, a Prefeitura de Curitiba mantinha um museu dedicado a ele e uma cinemateca com seu nome). A crítica feita a um artista por causa do oficialismo, da sua institucionalização, não decorre da obra em si, mas de sua inserção no contexto social. Por isso é falha. O que importa é a obra. Se Dalton mudou o julgamento com relação à obra de Viaro, isso significa que os critérios estéticos que ele adotara antes já não valem mais, apenas algumas décadas depois? O que dizer então do julgamento sobre a grandeza de Botticelli ou Rembrandt que se mantém inalterado não após décadas mas após séculos?

Outro exemplo da mudança de julgamento estético por parte de Dalton diz respeito a Monteiro Lobato, como mostra Luiz Cláudio (p 164 e seg.). Em 1941, ele publicou um artigo em Tingui bastante elogioso ao escritor. Todavia, no nº 12 de Joaquim (de agosto de 1947) ele o renega, criticando-o em termos muito violentos. Novamente, isso revela falta da adoção de critérios estéticos objetivos por parte do contista curitibano na avaliação de um artista, cujo valor, se existe, perdura ao longo do tempo e não está sujeito à volubilidade ou idiossincrasias do crítico.

Dalton criticou o amigo Viaro (depois de morto), porque era (é) contra a institucionalização dos artistas. Certamente criticará também a de Leminski (objeto em agosto, mês de seu aniversário, de um evento cultural oficial na cidade chamado Perhappiness, além de ser nome de uma pedreira em Curitiba). Noto aqui uma semelhança da atitude de Dalton com a de Jean- Paul Sartre, que recusou o prêmio Nobel de Literatura para não ser “institucionalizado” (aliás, Sartre é um dos escritores que interessava a Joaquim, pois suas páginas reproduzem textos dele). Vale lembrar também que, certa vez, Cony caracterizou a literatura de Trevisan como sartreanamente “nauseada”. Essas referências me fazem suspeitar que não é absurda a associação que Gustavo Corção fez da vinculação de Joaquim ao existencialismo, tema aliás de um artigo de Temístocles Linhares publicado na mesma revista, da qual era um dos principais colaboradores. Por outro lado, Luiz Cláudio diz que Joaquim não é existencialista porque Waltensir Dutra, no artigo “O reacionarismo do Sr. Gustavo Corção” (Joaquim nº 14) declara que a revista não segue nenhuma tendência ideológica ou filosófica (p 167). Mas não é possível Waltensir afirmar isso e na prática a revista contradizer sua afirmação?

Afirma o autor que Joaquim não encerrou as atividades por problemas financeiros, a razão mais freqüente para deixarem de circular revistas de literatura e arte no país. Luiz Cláudio mostra que havia um satisfatório número de anunciantes da revista, de modo a cobrir as despesas de sua impressão. Foram outras as razões para o fato, ligadas ao perigo de sua institucionalização (cf. na p. 184 opinião de Poty Lazzarotto, outro colaborador assíduo da revista) e à personalidade de Dalton, que segundo Wilson Martins era quem praticamente fazia sozinho a revista (de qualquer forma, a revista já tinha cumprido sua missão básica, que era a divulgação do trabalho de seu proprietário, “o autor mais publicado em toda a existência de Joaquim- p. 104).

Já que me referi a questões financeiras, lembrei agora de um caso pitoresco a elas relacionadas. No expediente da revista, no nº 3, consta como seu “subgerente” Antônio Carlos Pereira. Segundo um amigo, que por sua vez era amigo de Dalton, esse Antônio Carlos, conhecido como “Carlinhos”, era um sujeito muito forte, briguento e temido na Curitiba de então. Por essas “credenciais”, Dalton disse ao meu amigo que o associou à revista para que se encarregasse de seu setor de cobranças...

Constatam-se, no trabalho de Luiz Cláudio, alguns problemas de revisão. E também alguns claros equívocos, apontados a seguir: Nestor Victor não chegou a ser eleito para a Academia Brasileira de Letras, o que se afirma na p.58; Romário Martins não viveu entre 1893 e 1944 (p 58) e sim entre 1874 e 1948; GERPA, de Raul Gomes, não editou as obras completas de Emiliano Perneta (p 62), embora fosse essa a sua intenção, e sim apenas a “Prosa” dele (na capa deste livro, publicado em 1945, chegou a constar, porém, “Obras Completas- 1º Volume”...).

Independentemente dos reparos que possam ser feitos ao trabalho, vale a pena ler esse livro equilibrado, desapaixonado, que contribui para elevar o nosso nível de informação sobre a realidade cultural do Paraná e estimula o debate sobre questões cruciais dessa mesma realidade.



















quarta-feira, 20 de outubro de 2010

AS ORIGENS DO ESTADO DO PARANÁ SEGUNDO O SEU PRIMEIRO HISTORIADOR



O nosso primeiro historiador, ou cronista histórico, foi um português nascido na cidade do Porto chamado Antonio Vieira dos Santos (1784-1854), que veio para o Brasil muito jovem, em 1797, e já no ano seguinte vivia em Paranaguá (1). Sobre essa cidade e município escreveu uma “Memória Histórica” em 1850 que é uma fonte preciosa de informações sobre as origens do Paraná pois nela transcreve os registros contidos em livros e demais documentos que encontrou na Câmara daquela cidade, a mais antiga do Estado. A preservação desses documentos era então uma preocupação do Império e também da província de São Paulo, à qual estávamos então subordinados, como mostra uma portaria publicada na edição da referida “Memória Histórica” a que tive acesso (2). Mas a nossa subordinação não duraria muito tempo mais, uma vez que em 1853 o Paraná se emanciparia politicamente de S.Paulo. O trabalho de Vieira dos Santos já reflete fortemente a busca de uma identidade local, no balanço que faz de todo o passado do território, de mais de três séculos, inclusive do movimento emancipacionista, ao qual se solidariza...

O autor começa por onde deveria começar, pelo início da ocupação da região, feita por gente que habitava o sul do litoral de S. Paulo, especialmente Cananéia, Iguape e S.Vicente, dada a maior proximidade desses povoados. Num parágrafo memorável, cuja beleza resulta da evocação dos elementos naturais da baía de Paranaguá, Vieira dos Santos sintetiza como teria sido a penetração primeira nessa baía, revelando, além do conhecimento histórico, também da flora e da fauna da região, assuntos igualmente contemplados em seu livro, dentre alguns outros mais:

Na verdade seria bem agradável aos primeiros povoadores vindos de Cananeia quando pela primeira vez entraram pela barra a dentro de tão formoso lago semeado de tantas ilhas e suas margens orladas de verdes mangais, circuladas de serrarias e montanhas de diversas figurações e alturas, acobertadas de riquíssimos bosques e espessas matas, onde sobressai o ararivá, o cedro, a palmeira, a pindaíba e o indaiá, onde cruzavam nos ares imensos turbilhões de papagaios, tucanos e periquitos, onde exércitos de formosíssimos guarás, vestidos de escarlate e quais soldados britânicos voavam em linha de batalha militarmente; onde o canto do pintassilgo, do canário, do bonito e sabiá, regozijavam os ouvidos, onde o trinado da araponga repicava o sino da alegria pela boa-vinda dos novos hóspedes, e onde finalmente centenas de índios carijó, estupefactos nas suas pequenas aldeias de que a baía estava povoada; e à porta de suas choupanas, ou dentro de pirogas de suas pescarias, admirados estavam vendo a entrada daqueles novos hóspedes, que os haviam de senhorear, ensinando-lhes a educação, a civilidade e a religião, e a entrarem algum dia na ordem social das mais nações e talvez já estão meditando a maneira porque haviam de expulsar à força tais hóspedes estrangeiros, com algum assalto inesperado; mas aqueles novos ingressos, evitando tais ciladas, se quiseram acautelar, indo desembarcar na Ilha da Cotinga, como lugar de mais seguro asilo, onde logo principiaram a fazer seus estabelecimentos: essa vista linda e pitoresca das baías de Paranaguá, melhor as poderia escrever um Milton. (3)


Em 1532 Martim Afonso de Sousa fundou S. Vicente, a primeira vila do Brasil. Antes disso, porém, encontrou-se na ilha de Cananéia com Francisco de Chaves, um bacharel português e cinco ou seis castelhanos. “Esse bacharel havia 30 anos que estava degradado nesta terra. E o Francisco de Chaves era mui grande língua desta terra” (p.15, nota 8; Vieira dos Santos cita aqui o diário de navegação de Pero Lopes de Sousa). Eles dizem a Martim Afonso que se fosse organizada uma expedição ao interior, ela localizaria minas de ouro e prata, e lhe traria muitos escravos carregados desses metais. Martim Afonso então autoriza uma expedição, composta por 80 homens, sob o comando de Pero Lobo; mas dessa expedição nunca mais se terá notícia...(p.15-16).

Embora Vieira dos Santos faça referência a áreas mais próximas ao litoral paulista como aquelas em que provavelmente a expedição caiu vítima dos índios, hoje os autores identificam essa expedição com aquela mencionada nos “Comentários” de Cabeza de Vaca. Aí se diz que os nativos encontrados pelo “adelantado” lhe informaram que os portugueses enviados da costa paulista foram trucidados por índios hostis na confluência dos rios Iguaçu e Paraná. A expedição de Pero Lobo foi assim a primeira iniciativa oficial portuguesa de penetração ao interior do Brasil (“a primeira bandeira”- p. 15), e ela ocorreu em terras paranaenses (do lado espanhol, a historiografia registra a façanha de Aleixo Garcia, que em 1524 teria atravessado também essas terras, orientado pela mesma cobiça dos metais preciosos, e que atingiu o império inca seis anos antes de Pizarro). Certamente notícias dessas riquezas minerais a oeste haviam sido repassadas pelos índios aos degredados de Cananéia, assim como o foram antes a Aleixo Garcia, um náufrago da expedição de Solis, o descobridor do rio da Prata (tanto Solis como Garcia eram portugueses, mas estavam a serviço da Coroa espanhola).

Em 1534 Portugal decide adotar, para o Brasil, o sistema das capitanias hereditárias já experimentado antes “em suas possessões insulares do Atlântico”, atribuindo à iniciativa privada a responsabilidade pela ocupação efetiva da sua colônia americana. Como donatários, o Rei português escolheria mercadores e funcionários, gente bem posicionada na corte e enriquecida nos “negócios das especiarias no Oriente” (4).

O território do atual estado do Paraná estava contido em duas capitanias, a de S Vicente, atribuída a Martim Afonso de Sousa, e a de Santana, concedida a seu irmão, Pero Lopes de Sousa. A primeira estendia-se por uma costa de 45 léguas, desde Bertioga até a ilha do Mel, e a outra, abrangendo 40 léguas, desde essa ilha até Laguna, se considerarmos o limite inferior do tratado de Tordesilhas (5). Mas esse limite não era entendido da mesma forma por portugueses e espanhóis. Para os portugueses, o limite ambicionado, era, na realidade, o rio da Prata, que aliás Pero Lopes de Sousa subiu,em sua exploração da região, e chegou a assinalar “com seus padrões a posse da Coroa portuguesa”, ignorando assim aquele tratado (6). Bem mais tarde, no século XVII, os portugueses chegariam a fundar a colônia do Sacramento na outra margem do Prata, em frente a Buenos Aires.

Será a busca de metais preciosos a motivação econômica para que se iniciasse a ocupação do litoral paranaense. De fato, a busca do ouro era uma preocupação constante daqueles aventureiros lusitanos que habitavam o sul do litoral paulista. Já em meados do século XVI se constatam na capitania de S. Vicente tais pesquisas, conforme afirma Carvalho Franco (7). Seria de se esperar que os pesquisadores de S. Vicente ou Cananéia penetrassem o litoral contíguo ao seu, como uma projeção dessa busca que empreendiam.

Diz Vieira dos Santos que os primeiros ocupantes passaram da ilha da Cotinga para terra firme, “investigando a navegação dos rios dos Almeidas, Correias e Guaraguaçu, até suas nascentes, e nas margens destes descobriram abundantes minas de ouro, que depois foram conhecidas pelo nome-- Minas de Paranaguá-- inclusive outras que se descobriram em diversos rios e lugares dos contornos, porque é constante que antes do ano de 1578, já há muito tempo se trabalhavam nestas minas” (p.19). Francisco Negrão, em nota a essa passagem, questionou aquela data, tão recuada no tempo, para a descoberta e exploração das minas que, segundo ele, teria ocorrido por volta de 1640 (p. 20).

A tradição diz que o primeiro ouro encontrado no Brasil foi o de Paranaguá. Trata-se de ouro de lavagem, o ouro encontrado nos diversos rios que nascem na serra do Mar e vão desaguar na baía de Paranaguá. Mas aparentemente a descoberta do primeiro ouro deve ter ocorrido muito tempo depois dos primeiros contatos dos vicentistas na baía de Paranaguá. A menção mais antiga a eles consta do livro de Hans Staden, soldado da expedição espanhola de Diego Senabria cujo navio, em 1550, desorientado, veio dar em Superagui em vez da ilha de Santa Catarina à qual se destinava.

No continente, os primeiros habitantes do nosso litoral estabelecem-se às margens do rio Taguaré (p.19), atual Itiberê, originando assim a vila de Paranaguá, que só seria reconhecida oficialmente como tal em 1648. Sua população, nessa época, era de 6 a 8 mil habitantes (p.34). Por outro lado, a fundação da vila de Curitiba para Vieira dos Santos dataria de 1654 (p.38), antes portanto das datas hoje reconhecidas para essa fundação, que são aquelas indicadas por Negrão, em nota a essa passagem (1668 para a instalação do pelourinho, e 1693 para a instalação oficial da vila de Curitiba, quando se elegeram as suas autoridades) (p. 38). O autor da “Memória Histórica” atribui o papel mais importante quanto à fundação das vilas de Paranaguá e Curitiba a Eliodoro Ébano Pereira, o que também é questionado por Negrão. Ele atribui tal papel a Gabriel de Lara (p. 33). O objetivo de Eliodoro, que percorreu todo o Sul enviado pelo governo português, era avaliar a sua produção aurífera, a fim de assegurar à Coroa a percepção da parte que lhe era devida, ou seja a quinta parte de seu valor.

Em 1697 chegará a ser criada em Paranaguá uma Casa de Fundição do ouro (p.61), para a qual deveria ser encaminhado o ouro obtido não só em Paranaguá mas também em Curitiba, São José dos Pinhais e Campos Gerais. Até então, o ouro era enviado a Iguape ou ao Rio de Janeiro para ser fundido e identificado o montante do quinto real. Mas tal Casa terá vida curta, pois elas foram abolidas em 1735 pelo "Governador do Estado do Brasil" Gomes Freire de Andrade, que instituiu novo método de arrecadação dos quintos de ouro (p.148).

O “capítão-povoador” Gabriel de Lara era a pessoa de maior autoridade no lugar, autoridade essa que decorria do fato de que ele representava o Conde de Monsanto, depois Marquês de Cascais, herdeiro do primeiro donatário, Pero Lopes de Sousa. Mas esse conde não era o único herdeiro. Também o era D. Mariana de Faro Sousa. As terras em questão (“cem léguas de terra que tinha na costa do Brasil”) foram indicadas como dote, conforme autorização dada por um “alvará régio” de 1651 (p. 36 e 40), por ocasião de seu casamento com D. Luiz Carneiro, Conde da Ilha do Príncipe, o qual se dispõs a lutar pelos direitos deles.

Como salienta Negrão (p. 44), em razão dessa pendência, houve uma época em que Paranaguá teve dois capitães-mores, um nomeado pelo conde da Ilha do Príncipe e outro, Gabriel de Lara, pelo marquês de Cascais. Mas é Lara quem acabará por prevalecer na sua governança pois o Marquês de Cascais, para mais bem preservar os seus interesses, resolveu criar em 1656 a Capitania de Paranaguá, independente da de Itanhaém, da qual era donatário o conde da Ilha do Príncipe (p. 13). A Capitania de Paranaguá duraria até 1711, quando suas terras foram adquiridas pela Coroa portuguesa (p.68).

Gabriel de Lara faleceu em 1682; até sua morte, ele foi o capitão-mor de Paranaguá. Sucedeu-o nesse cargo, durante o período de existência da Capitania, Tomás Fernandes de Oliveira, Gaspar Teixeira de Azevedo, Francisco da Silva Magalhães e João Rodrigues de França.

Como se depreende das observações de Vieira dos Santos, hierarquicamente, a Capitania de Paranaguá estava subordinada ao governo do Rio de Janeiro que por sua vez subordinava-se ao sediado na cidade de São Salvador da Bahia, capital do Estado do Brasil. Dentre os governadores do Rio de Janeiro destaca-se, nessa Memória Histórica, o nome de Salvador de Sá Correia e Benevides, governador do Rio de Janeiro desde 1648 (p.25), que inclusive chegou a visitar Paranaguá em 1660 a fim de avaliar in loco suas minas e informar sobre elas ao Rei de Portugal (p.33 e 45).

Vieira dos Santos cita determinações do governo central que deviam ser obedecidas pela Capitania de Paranaguá e geravam hostilidade da sua população. Assim, por exemplo, a Capitania deveria fornecer índios aldeados a fim de que, em 1698, fossem reforçar uma expedição que iria combater índios bravios no Rio Grande do Sul (p.61 e 62). Antes disso, em 1659, o autor registra uma vereança da Câmara de Paranaguá na qual se requereu que “não fossem retirados os índios para o Rio de Janeiro, como ordenava o Governador do Estado, por ficar a terra despovoada e não haver quem trabalhasse nas minas”, além de deixar a terra “ sem defesa” contra “o inimigo holandês” (p. 43-44). A contribuição compulsória também poderia ser em alimentos ou mesmo em dinheiro. Após Manoel Lobo ser encarregado de estabelecer a colônia do Sacramento oficiou à Câmara de Paranaguá em 1679 solicitando o fornecimento de farinha de mandioca para a sua expedição (p. 56-57). Quando os franceses invadiram o Rio de Janeiro em 1711 Paranaguá foi solicitada a fornecer farinha, peixe e dinheiro em favor do pessoal mobilizado para combater os invasores (p. 68). Essas demandas a serem atendidas geravam naturalmente oposição por parte dos moradores da Capitania, pois agravavam a sua pobreza e retiravam mão-de-obra das atividades econômicas relacionadas ao ouro, e também à prata, igualmente explorada, embora, segundo Vieira dos Santos, não se soubesse qual era a localização de tais minas (o nome de “Serra da Prata” todavia, para ele seria indicador da existência de tal metal precioso na região) (8). Além disso, enfraqueciam a defesa da Capitania, cujas baías poderiam ser visitadas por piratas, como aconteceu em 1718 e 1726 (piratas franceses) (p. 35).

Para concluir, duas observações pontuais que se podem destacar na cronologia apresentada pelo autor, uma relativa a 1686 e outra a 1699.

1686 ficou caracterizado como um ano terrível para Paranaguá, uma vez que ela, assim como outras vilas da costa brasileira, foi assolada pela peste, que produziu elevado número de mortes. A situação era tão dramática que as igrejas dessas vilas litorâneas chegavam a suspender o dobre dos sinos para não aterrorizarem ainda mais as populações...

Quanto a 1699, nesse ano a Companhia de Jesus mandou alguns religiosos a Paranaguá, antigo desejo da comunidade, que assim poderia contar com o ensino ministrado pelos padres. Para que isso ocorresse, entretanto, houve uma negociação com a Companhia, que só atendeu ao convite em troca da oferta, por Paranaguá, de significativos bens materiais (metade da ilha da Cotinga, cem cabeças de gado nos campos de Curitiba, uma importância “em dinheiro contado”, uma casa de pedra e cal, terras etc (p.60, 63, 64).




NOTAS

(1) “Dicionário Histórico-Biográfico do Paraná”. Curitiba: Chain; Banco do Estado do Paraná, 1991- p. 428. Cf também as informações autobiográficas de
Vieira dos Santos in “Memória Histórica de Paranaguá”- v.I- Curitiba: Instituto Histórico e Geográfico de Paranaguá, 2001- p. 13, nota 4
(2) Santos, Antonio Vieira dos—“Memória Histórica de Paranaguá”- 2 volumes- Curitiba: Instituto Histórico e Geográfico de Paranaguá, 2001 (as páginas indicadas no texto referem-se a essa edição, de ortografia atualizada, que foi cotejada com a seguinte: “Memoria Historica. Chronologica, Topographica e Descriptiva da Cidade de Paranaguá e do seu Municipio”. Curityba: Typ. da Livraria Mundial, 1922, e também com a edição de 1951, disponível no acervo da Biblioteca Pública do Paraná)
(3) Santos, Antonio Vieira dos—“Memória Histórica de Paranaguá”- volume I- Curitiba: Instituto Histórico e Geográfico de Paranaguá, 2001, p. 75.
(4) “História Geral da Civilização Brasileira“- sob a direção de Sergio Buarque de Holanda. Tomo I- “A Época Colonial”, v.1- S.Paulo: DIFEL, 1985- p.95, 97 e 106
(5) Bueno, Eduardo—“Brasil: uma História”. 2ª ed rev.- S.Paulo: Ática, 2003- p. 44. Ver também Santos, Antonio Vieira dos—op cit, v.I, p.16-17.
(6) “História Geral da...”, op cit, p. 93
(7) Franco, Francisco de Assis Carvalho—“Introdução” a “Duas Viagens ao Brasil” por Hans Staden. S.Paulo: Sociedade Hans Staden, 1942, p. 13, nota 27
(8) Segundo F.A. Carvalho Franco, “Nos tempos coloniais não se encontrou prata no Brasil, muito embora para isso se tivessem feito bastas diligências” (cf. na sua “Introdução” ao livro de Hans Staden antes citada, p. 13, nota 27)

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

EM TORNO DO LIVRO DE HANS STADEN




Hans Staden foi um alemão nascido em Hessen que veio ao Brasil duas vezes, em meados do século XVI, na condição de artilheiro, ou arcabuzeiro, de navios ibéricos. Na primeira viagem veio em um navio português que visitou apenas o Nordeste. Na segunda, que é a que interessa à ótica paranista deste artigo, visitou o Sul do Brasil, em um patacho espanhol que foi dar no Superagui, na costa paranaense, em 24 de novembro de 1550 (1), em vez da ilha de Santa Catarina, para onde se destinava, aí chegando finalmente em 16 de dezembro do mesmo ano (2).

Seu nome ficou para sempre registrado na historiografia brasileira por ter publicado, no ano de 1557, em Marburgo, “Duas viagens ao Brasil”, um livro em que relata as suas impressões sobre esta terra, e os usos e costumes dos índios tupinambás, ou tamoios, que o aprisionaram, tribo hoje extinta, pertencente ao tronco linguístico tupi (3). Com eles conviveu nove meses, correndo o risco de ser devorado nos seus rituais antropofágicos.

O livro, ilustrado com dezenas de xilogravuras, causou muito interesse quando foi lançado, por voltar-se para o Novo Mundo recém-descoberto, satisfazendo a curiosidade europeia sobre nossa terra e a gente que aqui vivia.

Conforme nos informa F.A. Carvalho Franco, em sua introdução e notas, muito informativas, a uma edição do livro de Hans Staden, este veio como soldado de um patacho, chamado “S. Miguel”, comandado pelo capitão Juan de Salazar, que partiu de Sevilha, juntamente com duas caravelas, a cargo de Francisco Bezerra e Juan de Ovando. Esses navios foram enviados às Índias por Diego de Senabria que sucedeu o pai -- falecido ainda na Europa, antes de partir para o Prata -- na condição de “adelantado” da região. Dada a conjuntura da época, Diego julgou conveniente enviar essa expedição antes que a sua própria partisse da Europa com o mesmo destino (4).

Juan de Salazar, o fundador de Assunção em 1537, retornava agora à América de onde partira em 1545, mandado de volta à Espanha, juntamente com o “adelantado” Cabeza de Vaca, em decorrência da rebelião política que reconduziu Domingo de Irala ao poder. Quando seu navio chegou à ilha de Santa Catarina, já havia ali chegado, no mês anterior, a caravela do capitão Bezerra, “que estava então a mando de Cristovam Saavedra”. Da outra caravela, a cargo de Juan de Ovando, “não se teve mais notícia” (5).

Staden refere-se, no cap. 7, da Primeira Parte de seu livro, ao Superagui, segundo ele habitado pelos índios tupiniquins, amigos dos portugueses. Dois destes foram contatados por pessoas de seu navio. Estavam num barco que então encontraram. Eles lhes informaram ser de São Vicente, indicaram onde estavam agora e lhes orientaram quanto à localização da ilha de Santa Catarina para onde rumariam depois.


Anteriormente, Staden fizera menção a um pequeno navio, também com portugueses de São Vicente, que fugiu à sua aproximação, pensando que eles eram franceses. Para Cecília M. Westphalen, o livro de Hans Staden é “a primeira referência que se tem ao litoral paranaense e à presença de vicentinos na sua costa”. (6)

Saliente-se que, próximo ao Superagui, havia um caminho por terra para Cananéia (7). Os índios deste último povoado também eram amigos dos portugueses. Mas os tupinambás ou tamoios, mais ao norte, que aprisionaram Hans Staden em Bertioga, haviam se aliado aos franceses, seus inimigos (Staden ficara encarregado de um forte aí construído pelos portugueses cuja função era impedir os ataques dos tupinambás a São Vicente). Os portugueses acabariam por derrotar posteriormente os franceses e seus aliados, contribuindo assim para a extinção dos tupinambás.

Superagui caía dentro da jurisdição da capitania de São Vicente, situada entre Bertioga e a ilha do Mel, na baía de Paranaguá. A partir daí, para o sul (até Laguna), situava-se a capitania de Santana (8). O Estado do Paraná atual ficava contido, assim, dentro dessas duas capitanias, que couberam respectivamente a Martim Afonso de Souza e a seu irmão, Pero Lopes de Souza. Mas os portugueses não seguiram à risca a delimitação estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas, considerando de fato seu limite meridional o Rio da Prata (onde Pero Lopes chegou a instalar um marco indicativo da posse portuguesa da região), o que naturalmente era questionado pelos espanhois. Os dois reinos ibéricos disputavam portanto esse território. Sabiam da importância da sua ocupação efetiva para assegurar os direitos que alegavam ter sobre ele.

A ilha de Santa Catarina sempre foi uma referência importante aos navegadores na costa meridional brasileira ou sul-americana nos primórdios da nossa história. Os espanhois procuraram ocupá-la desde cedo, estabelecendo relações de amizade com os índios da região.

Foi ali que naufragou, em viagem de regresso à Espanha, um dos navios da armada de Solis, considerado o descobridor do Rio da Prata em 1516. Um dos náufragos era Aleixo Garcia, que passaria a viver naquela ilha em contato com os índios, os quais despertaram a sua cobiça ao lhe informar sobre a existência de uma “serra da prata” na parte mais ocidental do continente, fazendo-o decidir-se a percorrer a pé -- com os seus acompanhantes, na maioria indígenas -- todo o território até aquela região e chegar, seis anos antes de Pizarro, ao império inca. Esse caminho trilhado por Garcia em 1524 seria posteriormente seguido por outros aventureiros, a partir da ilha de Santa Catarina, em direção ao oeste. Trata-se do chamado “caminho do Peabiru”, na realidade um sistema de caminhos trilhado pelos indígenas já antes da chegada dos europeus.

Em 1541 Cabeza de Vaca, nomeado “adelantado” do Rio da Prata, resolveu viajar para Assunção, sede de seu governo, percorrendo o mesmo caminho por terra, descartando a opção marítimo-fluvial que dispunha. Como se vê pelo relato dessa viagem nos “Comentários”, ele percorreu boa parte do território atualmente paranaense de leste a oeste. Foi o primeiro branco a contemplar as Cataratas do Iguaçu.

Outros colonizadores espanhois também fariam essa viagem, percorrendo o mesmo território, conforme se deduz do que afirma F.A. Carvalho Franco na sua Introdução, já referida, à obra de Hans Staden.

Em 15 de agosto de 1551 chegaram a Assunção Cristovam de Saavedra e cinco soldados mandados por Juan de Salazar desde a costa catarinense até Assunção a fim de comunicarem ao governador Irala da nomeação do novo “adelantado”, Diego de Senabria, e solicitando víveres e recursos aos membros da expedição que viviam precariamente naquela costa. O enviado de Irala, todavia, não os encontra ali, pois haviam se deslocado para outro lugar da costa, onde por fim o patacho acabou por encalhar e a caravela, naufragar, “nas cercanias do Viaçá”.

Em princípios de 1552 parte dos membros da expedição Senabria, comandados por Afonso Velido e Fernando de Salazar, faz a mesma viagem a pé, por terra (outra parte, na qual se incluía D. Mencia, mãe de Diego de Senabria e também das esposas de Fernando de Trejo e de Cristovam de Saavedra, vai em um batel ali construído, sob o comando de Juan de Salazar, do porto de Viaçá (Laguna) para o de São Francisco. Hans Staden estava entre estes, conforme ele diz no cap. 11 da Primeira Parte de seu livro).

Também a expedição do próprio Juan de Salazar deve ser citada. Ele tinha conseguido chegar a São Vicente, acompanhado de alguns membros da expedição Senabria (o restante dela ficou povoando São Francisco, tendo como dirigente Fernando de Trejo). Salazar buscava inutilmente em São Vicente apoio para a viagem deles até Assunção. Não conseguindo navio para tal viagem, decide ir por terra mesmo até lá. Nessa expedição, juntam-se a ele Cipriano de Góis e seu irmão Vicente de Góis, filhos do donatário da capitania de São Tomé, que teriam levado para Assunção “o primeiro gado daquela região platina” (9). Também foi com Salazar Ruy Díaz Melgarejo que fundaria no Guairá logo depois, em 1557, Ciudad Real e mais tarde, em 1570, Villa Rica del Espiritu Santo. À expedição juntaram-se ainda seis portugueses e uma dúzia de espanhois. Também tomaram parte dela a mulher de Cipriano de Góis e a de Salazar, as duas filhas desta e mais três mulheres casadas. Após cinco meses de viagem atingem o Guairá (que segundo Plinio Ayrosa significa em tupi “o lugar intransponível”) e finalmente Assunção, onde chegaram em outubro de 1555 (10)

F.A. Carvalho Franco cita ainda Fernando de Trejo, outro colonizador a percorrer o referido território a pé. Ele estava encarregado de manter um povoado espanhol em São Francisco do Sul mas, face às dificuldades que encontra, decide abandoná-lo com outros náufragos da armada de Senabria e parte dali, chegando a atingir Assunção em meados de 1556 (11). Outros autores afirmam que por causa desse abandono ele teve que responder a um processo em Assunção, pois o povoamento de São Francisco era um dos principais objetivos da armada de Senabria.

Como se vê por esses exemplos, o caminho por terra para Assunção, a partir das proximidades da ilha de Santa Catarina (trilhado por Cabeza de Vaca), ou da costa catarinense, que cortava o território atualmente paranaense, foi muito seguido nessa época.

Houve também quem fizesse o caminho inverso, desde Assunção até São Vicente, no litoral paulista, caso de Ulrich Schmidl, Ruy Díaz Melgarejo e outros... A propósito, todo o trajeto de Schmidl foi reconstituído por Reinhard Maack (12).

Gostaria de concluir referindo-me ao importante porto de Viaçá da costa catarinense, associado às diversas tentativas de ocupação espanhola da região. Staden referiu-se a ele pelo seu nome indígena Imbeaçã-pe (cap. 12, da Primeira Parte). F.A. Carvalho Franco arrola argumentos que identificam o porto de Viaçá com Laguna ou porto dos Patos. Mas salienta que a historiografia também fala em “país do Viaçá”, referindo-se à região desse porto ocupada pelos índios carijós ou mbiás. Carvalho Franco segue Moisés Santiago Bertoni que em seu livro “La Civilización Guarani”, diferentemente de outros autores, distingue uma nação da outra. Para eles, “país de Viaçá” ou Mbiaçá -- que abrange uma área que se estende “desde o Paraguai até as cercanias de Cananeia, passando ao norte do rio Iguaçu” -- seria dos índios mbiás e não dos carijós (13). Essa área, já se vê, incluía boa parte do território atualmente paranaense...

NOTAS

(1) “Dicionário Histórico-Biográfico do Estado do Paraná”, Curitiba: Chain: Banco do Estado do Paraná, 1991, p.206
(2) Cf “Introdução” de Francisco de Assis Carvalho Franco, a “Duas Viagens ao Brasil” de Hans Staden. São Paulo: Sociedade Hans Staden, 1942, p.7. Servi-me não só desta mas também da edição da L&PM, Porto Alegre, 2008 (“Introdução” de Eduardo Bueno).
(3) “Larousse Cultural. Brasil A/Z”. São Paulo: Editora Universo, 1988, p.828 (verbete “Tupinambá”)
(4) Cf.”Introdução”, op. cit, p. 5
(5) Cf.”Introdução”, op. cit, p. 7
(6) “Dicionário...”, op cit, p. 206
(7) Cf nota de Francisco de Assis Carvalho Franco a “Duas Viagens ao Brasil”, op cit, p. 57, apoiada em Moisés Marcondes-- “Documentos para a História do Paraná”, Rio de Janeiro, 1923, p.34.
(8) Bueno, Eduardo—“Brasil: uma História”. 2ª. ed rev. São Paulo: Ática, 2003- p. 44
(9) “História Geral da Civilização Brasileira” (sob a direção de Sérgio Buarque de Holanda)- São Paulo, DIFEL, 1985- Tomo I- “A Época Colonial”, 1º vol., p.104
(10) Cf.”Introdução”, op. cit, p.9-10
(11) Cf.”Introdução”, op. cit, p. 10
(12) Maack, Reinhard-- "Geografia Física do Estado do Paraná"- 2a ed.- Rio de Janeiro: J.Olympio; Curitiba: Secretaria da Cultura e do Esporte do Governo do Estado do Paraná, 1981- p. 27-35 e mapa
(13) Cf. nota de Francisco de Assis Carvalho Franco a “Duas Viagens ao Brasil”, op cit, p. 68.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

DUAS LEMBRANÇAS DE PAULO LEMINSKI



Tenho duas lembranças do poeta Paulo Leminski. A primeira é do começo de 1967, quando eu me preparava para o vestibular. Pretendia então fazer Direito e por isso me matriculei no "Curso Dr. Abreu", que havia ali na rua XV. Ele era o professor de História do cursinho. Assisti uma única aula sua, rica em informação. Parecia um grande urso, movendo-se entre as cadeiras da sala, de casaco e barba negras. Fez uma referência qualquer aos botoques dos lábios inferiores dos nossos indígenas, e a turma toda caiu na gargalhada. Mas ele continuou, com ar sério, sua exposição...

A segunda lembrança é do lançamento do “Catatau” na livraria Ghignone. Isso ocorreu em dezembro de 1975, segundo nos informa Toninho Vaz na sua biografia do poeta ("Paulo Leminski- o bandido que sabia latim"- Rio de Janeiro: Record, 2001). Estive lá a pedido de meu pai, que estava curioso para avaliar o livro, sobre o qual lera comentários na imprensa local. O velho não o conhecia pessoalmente. Por isso, na dedicatória, Leminski lhe enviou um “abraço textual”, expressão que guardei na memória por achá-la singular. Lembro também que nessa ocasião senti forte cheiro de bebida quando o polaco falou...

Mais tarde vim a saber que a gênese do “Catatau” relacionou-se a essa experiência de Leminski como professor de História, antes dele se tornar um publicitário. De repente, dando uma aula, ele imaginou Descartes vivendo no Nordeste brasileiro no tempo dos holandeses... Foi o ponto de partida para o livro.

Gosto da poesia dele, como todo mundo, mas para mim poesia é mais do que mera atividade lúdica. Associo-a à filosofia, e à reflexão sobre os temas eternos da condição humana. Sem esquecer, naturalmente, o prazer estético da linguagem...


Uma vez li em Wilson Martins que Leminski não deixou verdadeiramente uma obra. É mais um talento desperdiçado, acrescento eu, vítima do desregramento e da falta de disciplina interior. Lamentável!

quarta-feira, 16 de junho de 2010

VIAGEM A LISBOA E MADRI



Após uma semana no Velho Mundo, dedicada exclusivamente a conhecer Lisboa (v. foto) e Madri, já estamos novamente em casa, eu e Rosi.

Chegamos a Lisboa no dia 10 de maio de 2010, à tarde, após atraso de duas horas na partida do aeroporto de Madri, escala obrigatória no voo da Iberia que nos levaria à capital portuguesa. O motivo alegado foi a troca da aeronave, troca essa certamente relacionada ao problema que as cinzas do vulcão da Islândia trouxe aos voos na Europa (a viagem posterior, de Lisboa a Madri, sofreria um atraso maior, de umas três horas).

Deixamos as malas no hotel Eduardo VII e, sem disposição para descansar, partimos imediatamente para conhecer a cidade, agitada pela iminência da chegada de Bento XVI (havia nas ruas que percorremos faixas e outdoors dando-lhe as boas vindas). Iniciamos a visita pela famosa Praça do Comércio junto ao rio Tejo. Lá, homens trabalhavam preparando o local para a missa que o Papa rezaria no dia seguinte. Dessa praça saem várias ruas que levam à Baixa (o centro da cidade). Numa delas, que faz esquina com a praça do Comércio, funciona o famoso café Martinho da Arcada, frequentado por Fernando Pessoa (no local há várias fotos dele, e também de celebridades ainda vivas como o cineasta Manoel de Oliveira e o escritor José Saramago, que tem ali mesas cativas). Visitamos também outro café frequentado pelo poeta dos heterônimos, o “A Brasileira” do Chiado, região da cidade contígua à Baixa.

Subimos a pé por aquelas ruas, Augusta ou do Ouro, observando as lojinhas de comércio e os edifícios antigos, até o Elevador de Santa Justa, um dos cartões postais de Lisboa, que liga a Baixa ao Rossio. Depois, descemos pela rua do Carmo e caminhamos até a praça Luís de Camões pela rua Garret, onde se localiza o mencionado café ‘A Brasileira”, na frente do qual há uma estátua do poeta, sentado junto às mesas da calçada, como se fosse um turista a mais, bebericando.

Nas livrarias das imediações comprei “Breve História de Portugal” de A.H. de Oliveira Marques e o volume II da “História de António Vieira” de J. Lúcio de Azevedo (cujo volume I eu já possuía, adquirido num sebo de Joinville).

Próximo dessa área vi a chegada do eléctrico 28 a um ponto de parada. Logo corremos para apanhá-lo, pois eu sabia que esse bondinho faz um percurso interessante pelas áreas tradicionais da cidade, inclusive pelo seu bairro mais antigo e pitoresco, o de Alfama. Este bairro, visitamos mais demoradamente no dia seguinte (terça-feira, dia 11), quanto estivemos na Feira da Ladra e, mais tarde, no famoso Castelo de São Jorge, de onde se obtém uma vista panorâmica da cidade, e também no belo largo das Portas do Sol. Observamos daí não só o casario antigo lá embaixo mas também o Tejo. Percebemos a presença por ali (e também em outro locais) de muitos turistas alemães.

Depois disso, meu interesse era visitar o Museu Nacional de Arte Antiga, para ver lá a tela de Bosch “As tentações de Santo Antão”, além naturalmente dos artistas portugueses, como Nuno Gonçalves, autor de um políptico muito reproduzido nos livros de História (aquele em que aparece o infante D.Henrique). Mas o trânsito para a sua região estava todo impedido, devido à visita do papa, de modo que só visitaríamos esse museu no dia seguinte, dia 12, ao retornar de Cascais. Assim, mudamos os planos e fomos mais para o norte da cidade, nas proximidades do nosso hotel, região em que se localiza o museu da Fundação Calouste Gulbenkian, que visitamos, assim como a filial portuguesa de El Corte Inglês-- uma cadeia de loja de departamentos espanhola—onde jantamos. Do museu, a tela que gostei mais foi a de Rubens “Os amores dos centauros”. Mas havia também outras, de Franz Hals, dos impressionistas franceses etc

No dia 12 visitamos o imponente Mosteiro dos Jerônimos, onde estão os túmulos de Camões, Vasco da Gama e muitas outras figuras importante da história de Portugal. Para lá também foram transferidos, no cinquentenário da morte do poeta (1985), os restos mortais de Fernando Pessoa. No bloco de quatro faces que assinala o seu túmulo constam versos dele mesmo e de seus heterônimos. Os de Ricardo Reis são os seguintes:

Para ser grande, sê inteiro; nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.


Nessa ocasião visitamos também o Padrão dos Descobrimentos e a Torre de Belém, situados no local de onde partiam os navegadores portugueses. Um pouco adiante, na estação de Algés, pegamos o trem que nos levou à acolhedora Cascais (onde almoçamos e eu comprei, na livraria Galileu, um “Dicionário de Fernando Pessoa e do Modernismo Português”, recentemente lançado). Na viagem de ida a Cascais avistamos do trem o Cassino do Estoril.

A impressão que nos ficou do povo de Lisboa, cujos representantes contatamos (transeuntes, para pedir informações, motoristas de táxi, garçons, recepcionistas de hotel etc) foi a de gente sóbria, pouco extrovertida, prestativa, mas um pouco fria, emocionalmente...(ao contrário dos habitantes de Madri). Duas pessoas me causaram má impressão: um motorista de táxi salazarista, sarcástico, que criticou a democracia porque é dominada por políticos ladrões. Mas esse mesmo sujeito, quando lhe paguei a corrida, me roubou no troco... A outra pessoa foi uma mulher negra (aliás, em Lisboa, assim como em Madri, não se veem mulatos, e sim pretos retintos). Ela estava sentada num banquinho, à espera do trem para Cascais, e nós também. Quando quisemos ver, enternecidos, o rosto do bebê no colo dela, cuja cabeça estava coberta por uma manta, ela rispidamente nos proibiu: “Não se pode ver!...” O que será que se passava na mente daquela mulher? Medo de “mau olhado”?

Lisboa é uma cidade limpa, e aparentemente sem mendigos ou crianças de rua... O sistema de bondes, na região mais antiga, é pitoresco e lhe dá um ar peculiar. O tradicional coexiste com o moderno, pois os automóveis também circulam por aquelas ruas de Alfama, onde a impressão que a gente tem é que a cada momento vai acontecer um acidente... E podem também ocorrer ali cenas curiosas como aquela que aconteceu com o eléctrico que nos transportava... ele parou quando outro se aproximava em sentido contrário. Então o motorista desceu do bonde com uma espécie de alavanca nas mãos e usando-a na engrenagem fez com que o nosso bonde retrocedesse por um certo trecho, até ultrapassar um desvio que permitiria a passagem do outro bonde...

No dia 13 de maio, quinta-feira, enquanto o papa cumpria sua programação no santuário de Fátima, partimos de Lisboa, chegando a Madri por volta das 17 horas.

Na capital espanhola, instalamo-nos no hotel NH Zurbano. Logo em seguida, como em Lisboa, partimos para conhecer o centro da cidade. Tomamos o metrô próximo ao hotel e fomos sair em plena Puerta del Sol, cheia de gente fazendo festa, com muitos torcedores do Atlético de Madri comemorando a vitória do time (soubemos depois que ele ganhara a Copa da Europa). Predominava assim em toda parte a cor vermelha do time. Circulamos pelas imediações. Entramos em El Corte Ingles para avaliar os preços das encomendas que nos fizeram. Na livraria dessa loja de departamentos comprei “La España de los Austrias “ (1516 e 1700), de Bartolomé Bennasar, sobre os reis espanhóis da dinastia de Habsburgo aos quais se subordinaram Portugal e suas colônias. O livro me interessou por relacionar-se a um tema que venho estudando há algum tempo, o do “Paraná espanhol”. Como se sabe, Portugal (e também o Brasil) caiu sob o domínio de Felipe II, rei da Espanha, em 1580, e tal subordinação perdurou até 1640, sob Felipe III e IV. Mas a presença espanhola já se impusera no Estado do Paraná bem antes, desde meados do século XVI, no final do período de Carlos V...

Como em Madri escurecia tarde nessa época (lá pelas 21:30) tivemos bastante tempo para caminhar por toda aquela região, indo até a Plaza Mayor, cheia de gente sentada às mesas ao ar livre ou caminhando pela praça, circundada por edifícios de alguns andares apenas, como a Praça do Comércio em Lisboa, característica aliás dessas cidades, em que não se veem arranha-céus do estilo norte-americano. No centro da Plaza Mayor está uma estátua equestre de Felipe III (e no Museu do Prado, que visitaríamos no dia seguinte, 14 de maio, há diversas telas retratando Felipe IV pintadas por Velazquez). Li que no passado em tal praça havia touradas, julgamentos da Inquisição e execuções... Ao percorrer as lojinhas, restaurantes etc que existem ao longo dos quatro lados da praça deparamos com a saída repentina do que deveria ser um cartório de duas mulheres vestidas de branco, recém-casadas, sobre as quais um grupo de amigos jogava arroz e saudava com gritos entusiásticos... Jantamos no Museo del Jamón, um daqueles estabelecimentos típicos dessa área central da cidade, consumindo vinho da casa e um prato de “calamares” (lula frita), camarão, pata de caranguejo, peixe etc. É o que eles chamam de “tapas”. Subimos ao primeiro andar, onde se podia sentar, mas no térreo havia muita gente em pé, no balcão, tomando vinho ou uma “caña” (cerveja) com esses “tapas”, algo que vimos se repetir em diversos outros estabelecimentos.

Na manhã do dia seguinte, decidimos visitar o Museu do Prado. Para tanto tomamos um ônibus perto do hotel. Ônibus de boa qualidade, novo, com pouca gente. Junto ao ponto de parada havia indicação de quanto tempo faltava para ele chegar: um minuto. Chegou antes disso... Com ônibus desse tipo você troca facilmente o carro particular pelo transporte coletivo! É exemplo para as cidades brasileiras... (todavia, o trânsito em Madrid, especialmente nas horas de pico, não deve ser fácil, como percebemos ao chegar, fazendo o trajeto do aeroporto de Barajas até a Calle Zurbano...)

Descemos pelo Paseo de la Castellana, uma ampla avenida, passamos pela Plaza de Colón, Biblioteca Nacional e Plaza de la Cibeles até chegarmos ao ponto em que deveríamos saltar.
Para entrar no maravilhoso Museu do Prado, tivemos que pagar 8 euros por pessoa. Mesmo sendo dia de semana, há fila para entrar, formada em sua maior parte por turistas, como se percebia facilmente. De todo o acervo, o que mais curti foram as telas de Velazquez e Goya, além naturalmente as de Bosch Nos quadros mais famosos, há aglomeração de gente em frente a eles, o que dificulta um pouco a nossa curtição. Na saída do museu, é possível comprar-se livros de arte, e reproduções das telas em tamanho grande (comprei uma do “Jardim das Delícias” de Bosch, e outra, de “O guarda-sol” de Goya, além de um livro de interpretação sobre o simbolismo do primeiro quadro).

Saindo do Museu, caminhamos pelo Paseo del Prado até a Plaza de Cibeles, cujo monumento que mostra a deusa romana conduzindo um carro puxado por dois leões é também cartão postal da cidade, e dali seguimos em frente pela Calle de Alcalá, onde fizemos uma refeição, até reencontrarmos no final da caminhada a Puerta del Sol e a Plaza Mayor.

No dia 15, sábado, decidimos ir até o Museu Reina Sofía para ver quadros de Dali e a “Guernica” de Picasso. Já sabíamos o caminho, pois fica próximo ao Museu do Prado. Descemos do ônibus um pouco mais adiante, para ver a estação ferroviária de Atocha, um prédio antigo que curiosamente abriga um jardim de inverno em seu interior. Mas não conseguimos entrar no museu, pois estava fechado. Um dos poucos dias que fecha, durante o ano, é justamente 15 de maio, dia de San Isidro, o padroeiro de Madri. Devia ser por isso que vimos em vários lugares pessoas jovens e velhas com trajes típicos, que certamente participavam das festividades alusivas à data. Na Puerta del Sol encontramos um desses grupos, composto por gente de meia idade, cantando e dançando, em volta do qual se aglomeravam os transeuntes.

Como não pudemos visitar o Reina Sofía, decidimos tentar outro museu, localizado também nessa região, o Thyssen-Bornemisza, que felizmente estava aberto. Conta com um amplo acervo, desde artistas muito antigos até os mais modernos, e mesmo vanguardistas, como Kandinski e Braque. O que mais me impressionou ali foi um autorretrato de Rembrandt. Mas havia muita coisa interessante...

Na sequência queríamos visitar o Palácio Real. Pegamos um táxi e para lá nos dirigimos, pedindo para o motorista nos deixar em algum lugar, próximo ao Palácio, a fim de comermos alguma coisa. Tomamos uma “caña” e comemos uns salgados no balcão, ao estilo espanhol (ao nosso lado havia uma família, com avós, pais e filhos, em situação semelhante). Devido ao feriado de San Isidro, também não pudemos entrar no Palácio, só o observando por fora. Passeamos pelas suas imediações, observando na Plaza de Oriente a longa série de estátuas dos antigos reis espanhóis.

Saímos dali, e passeamos pelas ruas próximas, onde parte do comércio já estava fechado, por ser sábado à tarde. Acabamos assim retornando à região central.

Depois disso, entramos num estabelecimento da Plaza Mayor para jantar. Pedimos uma paella de frutos do mar. Em seguida retornamos de táxi para o hotel. A TV local mostrava artistas se apresentando num palco montado na Gran Vía, em comemoração ao centenário dessa avenida. No dia anterior havíamos estado ali e percebemos pela agitação que algum evento estava sendo preparado no local. Mais um motivo para festa desse povo alegre, que sabe viver, que faz a siesta depois do almoço e cujo comércio só reabre às 17 horas.... que a ditadura sangrenta de Franco não conseguiu tornar triste e desfibrado (nesses dias vimos manifestação dos trabalhadores numa praça de Madri em protesto contra o pacote de medidas adotado por Zapatero para combater a crise). Essa Gran Vía situa-se acima da Calle de Alcalá. Por ela também caminhamos um pouco, observando as pessoas e os prédios, vivenciando enfim a cidade...

Logo de manhã, 16 de maio, partimos para o aeroporto de Barajas, a fim de enfrentar as onze horas de viagem correspondente ao voo Madri-São Paulo. O voo iniciou na hora prevista, 12:15 em Madri, ou seja 7:15 da manhã no Brasil, já que há uma diferença aqui de cinco horas a menos no fuso horário.

JULIETA SOARES GOMES







Ela nasceu em 1866 na província de Santa Catarina, provavelmente naquela mesma Desterro, atual Florianópolis, onde seus pais se casaram em 20 de outubro de 1864.

O pai era um comerciante português chamado Manoel Soares Gomes, nascido no Porto em 1829. Ele contava, portanto, 37 anos quando Julieta nasceu. Já havia morado antes no Paraná, em Antonina, pois foi ali que nasceu, em 1854, seu filho Teófilo, fruto do primeiro casamento, com Maria Gonçalves Moraes, também nascida em Santa Catarina.

Teófilo destacou-se na nossa história política. Foi prefeito de Antonina, deputado estadual várias vezes e chegou a ser aclamado governador do Estado em Paranaguá, quando os federalistas ocuparam a cidade em 1894. Eles o libertaram da prisão (estava preso por ter liderado o movimento em terra, pouco antes da chegada da esquadra do almirante Custódio de Melo).

Além disso, ocupa um papel importante na história do teatro paranaense. Foi considerado por Tasso da Silveira o “fundador da literatura dramática no Paraná”. Como autor dramático, suas peças foram elogiadas pelo Conservatório Dramático Brasileiro, do Rio de Janeiro.

Era também industrial, proprietário de um engenho que beneficiava arroz em Antonina.

Quando Teófilo, meio-irmão de Julieta, nasceu, o pai deles, Manoel, contava 25 anos de idade. Não sei com que idade emigrou para o Brasil, mas seguramente foi mais um dos portugueses jovens que vieram para cá em meados do século 19 a fim de “fazer a América”...

A mãe de Julieta chamava-se Rita Adelaide Coutinho e era também natural de Santa Catarina, onde nasceu em 1838. Casou-se com Manoel Soares Gomes aos 26 anos. Coutinho é nome de antiga família portuguesa, e os genealogistas constatam a sua presença no Rio de Janeiro já nos séculos XVI e XVII. Porém, as origens dessa família na Ilha de Santa Catarina podem estar também relacionadas à vinda dos imigrantes açorianos, ocorrida no século XVIII.

O nome dado à única filha do casal (que teria ainda dois filhos homens -- Franklin e Edmundo) revela bom gosto literário por parte de quem o escolheu pois é imediatamente associado à peça de Shakespeare – “Romeu e Julieta”. Manoel, apesar de homem de negócios, poderia ser um interessado em arte, gosto que teria transmitido ao filho Teófilo, dramaturgo. Além disso, sabe-se que Julieta gostava de ler romances e estudou canto lírico. E Franklin, seu irmão, nascido no Rio de Janeiro em 1872, dedicar-se-ia profissionalmente à fotografia.

A informação sobre a cidade natal de Franklin nos indica que Manoel, nos primeiros anos da sua (segunda) vida de casado, deve ter se mudado com a família para o Rio, a fim de explorar as potencialidades comerciais da capital do Império, cidade que já devia conhecer, pois certamente entrou no Brasil pelo Rio de Janeiro. Mais tarde, contudo, ele se estabeleceria definitivamente em Curitiba. Em 1879, já o encontramos aqui como comerciante de farinha de trigo. Ele se tornaria um dos principais comerciantes da Curitiba do final do século 19, conforme atestam algumas fontes que consultei. Em 1889 sua casa comercial, localizada na praça Tiradentes, lidava com produtos importados dos Estados Unidos (máquinas à vapor, instrumentos de lavoura, artigos de ferragem, máquinas de costura, mobílias, louça, porcelanas, cristais etc). Naturalmente, sua importância econômica é relativa, pois está condicionada à realidade da época em que viveu. Curitiba, em 1890, possuía apenas 25 mil habitantes...

Pelo que foi dito antes, em 1879 a família de Manoel já residia em Curitiba. Julieta tinha então 13 anos de idade. Sua meninice, ela a passara em Santa Catarina e no Rio de Janeiro (Ilha do Governador, segundo uma parente). Saberemos algum dia quais as experiências de vida que mais a marcaram nesse período? Os fatos exteriores da vida de uma pessoa são mais fáceis de conhecer; agora, os outros...

A família morava bem no centro de Curitiba, próximo à Catedral, onde o monsenhor Celso Itiberê da Cunha era o vigário desde 1901.

Nada sei sobre a educação de Julieta. Mas, seguramente, ela deve ter recebido a educação da época para as moças de sua classe social.

Em algum momento, por essa época, ela conheceu Florêncio, um dos dez filhos do primeiro casamento do Coronel Caetano José Munhoz, pessoa de destaque na sociedade paranaense de então.

Caetano foi um dos primeiros a instalar engenho de erva-mate em Curitiba -- o engenho da Glória -- que daria nome ao bairro (Alto da Glória). Quando Zacarias de Góes e Vasconcelos assumiu a presidência da recém-instalada província do Paraná, em 1853, ele lhe ofereceu recepção em sua casa, conforme relata Alcides Munhoz em “Folhas Cadentes”. Caetano faleceu em 1877. Quando Julieta conheceu Florêncio, provavelmente o pai deste não mais vivia (a mãe já havia morrido em 1861).

A história de sua união com Florêncio tem as características dos romances que ela gostava de ler. Havia oposição de seus pais a essa união (por qual motivo?). Mesmo assim ela se casaria, em segredo, aos 14 anos (ele com 22), em 11 de outubro de 1880, na capela de N.Sra do Rosário, conforme registrou, um ano e meio depois, no livro próprio, o padre Júlio Ribeiro de Campos, muito amigo de Florêncio (a quem este assistiria, mais tarde, no leito de morte).


Há uma menção a Florêncio naquele livro de Alcides Munhoz: sabemos dessa fonte que em 1887 ele era funcionário da Tesouraria da Fazenda, em Curitiba (o prédio da delegacia fiscal do tesouro federal localizava-se então na atual rua São Francisco, esquina com a Barão do Serro Azul). Florêncio foi um dos que assinaram a carta em que os funcionários de Alfredo Munhoz (seu irmão mais velho) o cumprimentavam pelo aniversário. Certamente Alfredo, que galgara todos os postos da carreira fazendária auxiliara o irmão mais novo a iniciar nessa mesma carreira, que também já fora seguida por Caetano Alberto, um outro irmão. Depois de Curitiba, Florêncio atuaria na alfândega de Paranaguá, em Alagoas e terminaria seus dias como guarda-mor da alfândega de Santos, em 1909 (“guarda-mor”, segundo os dicionários, era o representante do fisco a bordo dos navios, ou o título oficial do chefe da alfândega nos portos).

Sabe-se que o casal Julieta-Florêncio se separou. Segundo a versão que ouvi em casa, a separação teria sido encorajada pela mãe de Julieta, Rita. Por essa época, Manoel já havia falecido (faleceu em 1891).

Supondo que a separação ocorreu no ano de nascimento do último filho de Julieta, ou após, então ela não deve ter ocorrido antes de 1895. Pelo que se depreende da inscrição no verso de uma foto no álbum da família, datada de 28 de abril de 1895, ele já morava em Paranaguá nessa época. Na realidade, ele foi transferido para a Alfândega de Paranaguá em agosto de 1890. Mas seus filhos todos nasceram em Curitiba. Em 1899 ele continua residindo em Paranaguá, pois seu nome consta como um dos 1ºs. escriturários da Alfândega dessa cidade, segundo o “Almanach Paranaense para 1900” (p.146). Não sei se Julieta mudou-se com ele para Paranaguá, mas não deve tê-lo acompanhado a Alagoas, já que nada ficou, na memória da família, relativamente a alguma lembrança dela associada a esse Estado da federação.

Em 1894 Curitiba foi invadida e ocupada pelos federalistas, após tomarem Paranaguá. A eles se juntam as forças de Gumercindo Saraiva, que avançara desde o sul e derrotara a resistência de Tijucas. Devido ao papel ativo desempenhado por Teófilo em Paranaguá, todo o clã dos Soares Gomes – vale dizer, a viúva de Manoel e seus filhos – devia ser partidário dos federalistas, ainda mais pelas suas fortes vinculações com Santa Catarina. Como se sabe, a revolta da Armada escolhera Desterro, a capital da província, para sede do Governo Provisório da república antiflorianista.

A família Munhoz, por outro lado, situava-se politicamente em campo oposto, pelo menos Caetano Alberto, irmão de Florêncio, que era membro do governo de então, pois ocupava o elevado cargo de Secretário do Interior, Instrução Pública e Justiça (Caetano Alberto, que também fizera carreira fazendária, se aposentara há pouco). A tradicional família Munhoz pertencia à “fração hegemônica da classe dominante paranaense”, a dos ervateiros. Assim, tal família devia apoiar as forças da ordem, legalistas, do Marechal Floriano Peixoto. Todavia, a separação do casal não deve ter sido causada pelas divergências políticas entre as duas famílias, pois Florêncio tomou o partido dos maragatos, i.e. dos Soares Gomes, antiflorianistas, chegando por isso a ser demitido da Alfândega de Paranaguá em 1894 (seria mais tarde reintegrado às suas funções).


Quando as forças federalistas invadiram Curitiba, a cidade estava acéfala. O governador em exercício, Vicente Machado, havia fugido para o interior. O Barão do Serro Azul, na condição de líder empresarial mais importante, procurava negociar com os revoltosos para evitar saques e outras manifestações de violência. Imagino a apreensão dos moradores da cidade ante tais fatos, em particular dos membros da família de Julieta, então com 28 anos, de sua mãe e dos filhos (Hermínia nessa época tinha 11 anos e Arabela, minha avó, apenas 4). As ameaças vinham num primeiro momento dos revolucionários, famosos pelas suas crueldades (degolamentos). Depois, quando a situação política reverteu em favor dos florianistas, as ameaças vinham das perseguições destes aos revoltosos. Antes, Teófilo estivera na iminência de ser fuzilado em Paranaguá. Isso agora viria a ocorrer com o Barão do Serro Azul e seus companheiros no km 65 da estrada de ferro Curitiba-Paranaguá, acusados de colaborarem com os federalistas.

Julieta faleceu em 1919, aos 53 anos. Quando pesquisei, a respeito dela, nos registros do Cemitério Municipal S.Francisco de Paula, em Curitiba, fiquei surpreso ao constatar que a causa da morte fora a tuberculose. Nunca ouvira falar, em conversas de família, nessa doença associada a ela. Esconderam esse fato por considerá-lo vergonhoso? Que choque deve ter sido para a família constatar essa doença, numa época em que ela era mortal! Como teriam reagido seus filhos? Arabela uma vez me contou que chorava escondido, pedindo a Deus que a doença passasse para ela, poupando assim a sua mãe...

Quando e onde ela teria contraído a doença? Em Paranaguá (cidade sabidamente menos salubre que Curitiba), onde poderia ter vivido algum tempo? Foi essa a verdadeira causa da separação do casal?

Julieta chegou a ser internada em algum sanatório, ou foi um caso de “tuberculose galopante”? Chegou a mudar-se para outro lugar, em busca de “ares” mais saudáveis, como ocorria normalmente com pessoas acometidas por essa doença? De qualquer forma, a doença deve ser a principal explicação para o fato de Arabela ter sido “criada pela avó” Ritinha, de quem, aliás, ela gostava muito, e a quem ela auxiliava nos cálculos, pois era “boa em matemática”...

Quando Dona Ritinha morreu, o nome de Julieta não constou, ao lado dos irmãos, no convite para a missa de 7º dia publicado no “Diário da Tarde” de 12 de dezembro de 1911. Que motivo explicaria essa omissão, reveladora da atitude da família perante ela? A doença a teria expulsado da sociedade e do mundo dos vivos? Ou seria simplesmente para não constar o sobrenome Munhoz ao lado do seu, que ela excluiu após a separação?



Das lembranças de Julieta que ficaram no âmbito familiar, uma me foi transmitida pelo meu pai: ele se lembrava de uma vez, quando menino, em que ela descrevia a ação de um romance que lera, no qual um dos personagens atirava em outro. E imitava o som da arma disparando: pam... pam...pam... (aliás, esse gosto por ler romances ela legou também às suas filhas, o que, segundo ainda o meu pai, era objeto de amável admoestação do monsenhor Celso a Dona Ritinha, por causa da leitura, pelas jovens em formação, de obras com possível conteúdo pernicioso...)

Outra lembrança de Julieta relaciona-se ao canto lírico. Arabela contava, emocionada, que na visita que fez à sua mãe, já bem doente, ela lhe cantou "Musica Proibita”(*). Quando Arabela, que tinha então 29 anos, retornava para o interior (onde seu marido era delegado de polícia), a mãe faleceu.

A partir de agora, um dos meus poemas preferidos de Cruz e Souza—“Tuberculosa” -- estará para sempre associado a essa mulher sensível, sonhadora, que viveu muito tempo antes de eu nascer. Mais do que referir-se a um personagem romântico, o poema expressa a verdade de uma experiência de vida dolorosa, numa determinada época histórica, felizmente superada, em que a medicina não contava ainda com os meios de vencer essa terrível doença.

Cruz e Souza, como Julieta, também nasceu em Santa Catarina. Nasceu no Desterro cinco anos antes dela. E morreria da mesma doença em 1898.

(*)"Musica Proibita" pode ser ouvida em:


Ogni sera di sotto al mio balcone
Sento cantar una canzone d’amore,
Più volte la ripete un bel garzone
E battere mi sento forte il core.
Oh quanto è dolce quella melodia!
Oh com’ è bella, quanto m’ è gradita!
Ch’io la canti non vuol la mamma mia
Vorrei saper perché me l’ha proibita?
Ella non c’è ed io la vo’ cantare
La frase che m’ha fatto palpitare:
“Vorrei baciare i toui capelli neri
Le labbra tue e gli occhi tuoi severi;
Vorrei morir con te angel di Dio,
O bella innamorata, tesor mio.”
Quí sotto il vidi ieri a passeggiare
E lo sentiva al solito cantar:
“Vorrei baciare i toui capelli neri
Le labbra tue e gli occhi tuoi severi;
Stringimi, o cara, stringimi al tuo core
Fammi provar l’ebbrezza dell’amor.”

0000

Toda noite embaixo da minha sacada
Ouço cantar uma canção de amor
Várias vezes a repete um belo rapaz
E a bater sinto forte o coração.
Oh, quão doce é essa melodia
Oh, como é bela, quanto me agrada
Minha mãe não quer que eu a cante
Gostaria de saber porque ela me proibiu
Ela não está e eu quero cantá-la
A frase que me fez palpitar:
“Gostaria de beijar os teus cabelos negros
Os lábios e os olhos teus severos
Gostaria de morrer contigo, anjo de Deus
Ó bela namorada minha querida”
Aqui embaixo ontem eu o vi a passear
E o ouvia cantando como sempre:
“Gostaria de beijar os teus cabelos negros
Os lábios e os olhos teus severos
Aperta-me, querida, junto ao teu coração
Deixa-me provar a embriaguez do amor”.

Sobre o compositor:



terça-feira, 15 de junho de 2010

EMILIANO PERNETA É UM GRANDE POETA?



A edição fac-similar de “Joaquim”, lançada, há alguns anos, pela Imprensa Oficial do Estado, permite-nos a leitura do famoso artigo de Dalton Trevisan (então com 21 anos e diretor-proprietário daquela revista), intitulado “Emiliano, poeta medíocre”, em que nega qualquer valor à poesia de EP (1866-1921), contestando frontalmente a opinião consensual do meio literário paranaense da época.


O artigo, que apareceu no número 3 da revista, em junho de 1946, reagia ao movimento em curso naqueles anos, promovido pelos admiradores de EP, destinado a revalorizá-lo e projetá-lo nacionalmente. Em 1945 publicam-se os dois volumes das “Poesias Completas” pelo editor Zélio Valverde, do Rio de Janeiro, e em Curitiba Gerpa-Grupo Editor Renascimento do Paraná publica um refinado ensaio de Erasmo Pilotto sobre o poeta, além da “Prosa” de EP, compilada pelo mesmo Erasmo, que aliás colaborava com Dalton na direção de “Joaquim”.


Erasmo, em seu estudo, considera EP “um poeta imenso”. Para ele, após o lançamento de “Ilusão” (1911), EP “é um poeta novo dentro do Brasil, uma nova vibração”. O livro continha “uma poesia que ainda não se tinha ouvido entre nós, assim tão clara, tão dionisíaca, tão luminosa, tão intensa, tão fresca e tão alada”.


O artigo de Dalton foi republicado, com alterações, cinco anos mais tarde na “Gazeta do Povo”, edição de 17 de junho de 1951, com o título “Emiliano, poeta perneta”, de onde extraio as citações abaixo (as alterações realizadas revelam uma opinião mais desfavorável com relação ao poeta). Para Dalton, a “mística de Emiliano” aqui existente era um equívoco. E a geração daqueles moços de então não queria nutrir-se de equívocos que a afastassem “da rua dos homens”. Para ele, a poesia de EP é artificial, falsa, “uma poesia de casinha de chocolate, onde quem passa a língua sente o gosto amargo da mentira”. Em sua opinião, Emiliano não fez “poesia essencial”. Situa-se “nos antípodas da verdadeira poesia e cujos versos chinfrins mais nos distanciam do coração quente da vida. Os seus temas, sem nenhum sentido ecumênico, são artificiais como florinhas coloridas de papel/.../ Em outro passagem, Dalton fala das suas “imagens do dicionário grego-latino”. Para ele, EP era homem ressentido que “escreveu versos não para trazer uma nova luz ao coração dos homens” e sim para se vingar do mundo./.../ De uma inspiração rasa como capim /.../ quando ia atrás da luz do sol fechava as janelas e acendia um fósforo. Falta céu e amor na sua poesia” etc


À parte os possíveis méritos que a atitude do jovem iconoclasta poderia conter, rompendo com o passado para dar lugar à modernidade na literatura paranaense, ela teve pelo menos uma conseqüência negativa: a de levar as novas gerações a menosprezar a obra de um poeta que vale a pena ser lido e estudado, não só por ser nosso, refletindo, à sua maneira, o modo de pensar e de sentir do nosso meio social, mas por ter composto alguns poemas realmente notáveis, tais como “Salomão”, “Vencidos”, “Nox”, “Baucis e Filemon”, “Azar”, “Cavaleiro” e “Última volúpia”, além daqueles citados ao longo deste artigo.


Trevisan, com o passar do tempo, tornou-se um escritor de prestígio nacional, e devido à opinião crítica dele -- embora meramente impressionista -- muitos devem ter descartado “in limine” a obra de EP, dando por resolvida uma questão sobre a qual não há consenso entre os nossos melhores escritores. Afinal, Emiliano Perneta é, ou não é, um grande poeta?


Além de Dalton, cuja opinião é analisada mais adiante, também se manifestaram contra ela Manuel Bandeira, que na introdução à “Antologia da Poesia Brasileira- Fase Simbolista”, considerou a poesia de EP prejudicada pelo nefelibatismo da escola (mas Bandeira só considerou o EP “simbolista”, coerente com o seu propósito de preparar aquela Antologia, e sabemos que apenas uns vinte poemas dos cento e tantos de “Ilusão” são “cabalmente simbolistas”, como afirmou Andrade Muricy, reconhecida autoridade no assunto. “Ilusão”, que abrange poemas elaborados, em sua maioria, entre 1897 e 1911, é esteticamente eclético, e reflete a evolução por que passou a sensibilidade do poeta). Otto Maria Carpeaux (que foi colaborador de “Joaquim”) afirma, na “Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira”, 1a. ed.,1949, que EP “não conseguiu vencer os preconceitos parnasianos. Mas os esforços de reabilitação, da parte de seus conterrâneos paranaenses, tampouco convenceram até hoje os de fora”.


Do lado das opiniões favoráveis, Péricles Eugênio da Silva Ramos acha que ele pode “figurar, sem favor, entre os nossos mais típicos e notáveis decadentes e simbolistas”. Massaud Moisés afirma que EP “conseguiu criar poesia de superior beleza, dentre as mais bem acabadas de todo o nosso movimento simbolista”. Alfredo Bosi contradiz Manuel Bandeira ao afirmar que “Os sestros da escola, apesar de numerosos, não abafaram em Emiliano Perneta a nota pessoal, expressionista/.../ Para Bosi, a poesia de EP, “lida e valorizada por poucos, espera um estudo analítico à sua altura”. Wilson Martins considera o poema “Para que todos que eu amo sejam felizes” “um dos mais belos de nossa literatura, e poucos haverá mais belos, de mais pungente e harmoniosa beleza do que ‘Sombra’ ” (poemas esses, aliás, que nada têm do nefelibatismo simbolista...). E na opinião de José Guilherme Merquior, EP, com B.Lopes, é um dos dois principais decadentes “de real interesse” da literatura brasileira. Ademais, refere-se elogiosamente à sua poesia, conforme citação abaixo. Dispenso-me de citar opiniões de Andrade Muricy e Tasso da Silveira, altamente elogiosas, porque seriam consideradas suspeitas, haja vista a afeição quase filial que os unia a EP.


Concentrando-me agora na crítica de Dalton -- porque é aí onde a opinião contrária à poesia de EP se encontra exposta de forma mais sistematizada --,em primeiro lugar ela é condenada porque seria desligada da vida, “da rua dos homens”, distante do “coração quente da vida”. Ela seria elitista, “torre de marfim”, anti-humanista, em suma. EP, de fato, se orgulha em buscar isolar-se da “multidão”, i.e. dos “bárbaros” -- habitantes de Curitiba, de Minas Gerais (onde morou por um certo tempo) ou de qualquer outro lugar. E quem são os “bárbaros” para ele? São os indivíduos não movidos pelo ideal, pela busca do bem e do belo, objetivo único do cavaleiro-artista empenhado no “bom combate”... Não será então uma atitude humanista criticar tais indivíduos, que vivem em condição degradada, aquém do seu potencial humano, chafurdando no “lodo” da vida mesquinha (voltada para a busca do dinheiro e do poder), sem aspirar às “estrelas”...? E o fato de EP demonstrar a maior simpatia pelas pessoas humildes, elogiando a vida simples da aldeia “(cf. “Solidão” I a V), e o trabalho do lavrador (na serena “Oração da noite”, que Brasílio Itiberê II musicou, ou no belo poema “Setembro”), não o aproxima do “coração dos homens”?


Relativamente ao artificialismo de sua poesia, a questão se relaciona à concepção estética adotada. Para EP (em seu livro “Alegoria”, de 1903), o ideal “é que a beleza fosse, mas como um astro, que vivesse da sua própria luz. Assim, uma estátua nunca era bela, porque se parecesse com Laís, mas Laís é que poderia ser bela, por parecer-se com uma estátua”. O artista, para EP, deve buscar conscientemente o artifício (“Ars artificium est”). Ele busca a Beleza, que “não é mais do que uma Ilusão!”. O objeto de sua atividade criadora é produzir, com as palavras, determinados efeitos na sensibilidade do ouvinte/leitor, assim como o mágico (o ilusionista) visa a produzir no seu espectador. Em decorrência dessa concepção, ou filtrada por ela, a paisagem e o homem da nossa terra não aparecem explicitamente nos poemas (com a única exceção do soneto “Iguaçu”). Aparecem transfigurados, transpostos para outra realidade, normalmente a da mitologia greco-latina ou a dos tempos bíblicos... O fato de ser artificial não exclui a verdade, na poesia. É o que ocorre quando EP usa o artifício da mitologia. Quando aborda, com muita vivacidade, os temas e personagens mitológicos (sem nada de “ranço clássico”, como assinalou Péricles Eugênio da Silva Ramos), ele está incorporando, em sua poesia, a verdade que o mito encerra. De qualquer forma, se considerarmos a cronologia dos poemas, como quer Cassiana Lacerda, verificaremos uma evolução no sentido do maior despojamento formal, e do menor artifício, à medida que o tempo passa...embora se acentue o caráter religioso, ou cristão, dessa poesia, o que também contribui para a sua rejeição, por parte de quem não compartilha da visão de mundo idealista de seu autor. Mas se isso for motivo para desqualificar um poeta, Dante – o maior de todos --, também o seria...


É falso dizer que a poesia de EP é sombria, que o poeta é um ressentido contra o mundo e não oferece perspectivas ao leitor, especialmente aos jovens, os quais “em vez de trilhar seu caminho fechado” deveriam tomar “as estradas alegradas de sol”. Também Bosi refere-se ao “cupio dissolvi” de EP, para ele um poeta tomado pelo desejo intenso de conhecer o próprio fim (mas o desejo intenso de EP não é o de morrer, e sim, como o de todo espiritualista, o de integrar-se ao “outro mundo”, que seria a “pátria verdadeira” para o exilado neste mundo. Como disse Tasso da Silveira, EP é “poeta de evasão”, mas não “de consumpção”...).


É verdade que o “tédio” está presente nos poemas, decorrência do descontentamento com a realidade dominada pelos bárbaros e da ânsia pela “pátria verdadeira”. Mas o poeta indica, como saídas para superar tal condição (ou meios de evasão), “o sonho” (da arte, do ideal), as festas, as viagens (no limite, a morte, a viagem final) e, “last but not the least”, a mulher, ou o amor sensual. Se acrescentarmos a Natureza e a religião ou o amor espiritual (cristão), essas são as principais áreas temáticas da poesia de EP.


Assim, não procede a afirmativa de que “Falta céu e amor na sua poesia”. Alguns de seus melhores poemas (“Versículos de Sulamita”, “Esse perfume”) e versos (“Tarde de olhos azuis e de seios morenos”- cf. a sinestesia) são justamente os que envolvem a sensualidade amorosa. J.G. Merquior, por isso, afirmou que “Perneta é antes de tudo um bom lírico erótico”. Se isso for verdade, como aceitar que falta vida à poesia de EP? O que há de mais vital do que o amor e o sexo? Aliás, Nestor Vítor – o crítico do Simbolismo brasileiro – já salientara esse aspecto da poesia do autor de “Ilusão”. Nesse particular, ele se distinguiria de seu (nosso) amado Baudelaire, que muito o influenciou, pelo caráter ardente e tropical – bem brasileiro portanto – de seus versos lírico-eróticos. Assim, pelo menos esse tipo de abordagem EP acrescentou ao simbolismo francês ... ao contrário do que afirma Dalton, para quem foi nula a contribuição de EP ao simbolismo, “apenas transportando para a nossa língua o figurino da escola”.


Para concluir, devo dizer que a crítica de Dalton dá pouca importância ao modo como EP se expressa nos poemas. Para alguns, como Paulo Leminski, essa questão é fundamental. Lembremo-nos da sua definição de poesia: “a liberdade da minha linguagem” (aliás, não conheço nenhuma declaração de Leminski sobre EP. Dentre os nossos poetas do passado, foi Dario Vellozo quem despertou nele maior interesse).


E como é a linguagem de EP? Ela pode apresentar-se como simbolista/nefelibata ou linguagem que usa um português arcaico ou linguagem direta, espontânea (chegando a ser até coloquial, algumas vezes) ou linguagem religiosa, semelhante à de uma ladainha. Apesar de usar as formas fixas e os versos metrificados e rimados (mas adotando liberdades formais, para adequar-se às suas necessidades estéticas), é uma linguagem musical, que prefere a eufonia a ajustar-se rigidamente aos padrões da versificação. Não faz somente o uso instrumental das palavras, para expressar as suas metáforas e comparações. Faz também uso estético dos fonemas que compõem as palavras, como é o caso do uso dos sons sibilantes em “Solidão”. Além disso, emprega freqüentemente a sinestesia (evocação de impressões sensoriais), o que contribui para dar aos seus versos um caráter bastante pessoal. Dalton, embora reconheça a “suficiência de sua expressão melódica”, critica a sua inspiração. De fato, muitas vezes ele explora imagens convencionais, como por exemplo a oposição estrelas/lama, a associação de “embarcar” com a viagem final (a morte) ou a identificação da luz com o plano superior do espírito. Mas deve-se entender isso apenas como um ponto de partida. É no desenvolvimento do poema que se encontrará a sua contribuição mais significativa, como se nota em “Versos para embarcar” ou “Sol”, duas das melhores realizações dessa poesia.

OBS- quem tiver interesse em conhecer mais a produção poética de Emiliano Perneta poderá agora adquirir o livro "A poesia de Emiliano Perneta", de Domingos van Erven, no link https://www.agbook.com.br/book/138402--A_POESIA_DE_EMILIANO_PERNETA