sexta-feira, 12 de março de 2010

SOBRE O ÚLTIMO LIVRO DE RUI WERNECK




Wilson Martins escreveu certa vez que para saber se um livro era bom ou não levava-o para a cama. Se ele o mantivesse preso à leitura, e não o deixasse dormir, era sinal de que era bom. Caso o mesmo critério seja utilizado para avaliar “Nem bobo nem nada” (Rio: Livre Expressão, 2009), o último livro do escritor curitibano Rui Werneck de Capistrano passa no teste. Pois uma vez iniciada sua leitura, não a abandonamos mais. Trata-se, como o classifica o autor, de um “romancélere”, um romance rápido, de 150 microcapítulos, compostos de um só parágrafo, quase que do tamanho de um texto de “twitter”, muito apropriado a estes nossos dias em que ninguém mais tem tempo e disposição para enfrentar romances do tamanho de ”Guerra e Paz”... Por isso o ideal hoje é a ficção curta, como neste caso, ou o conto, área aliás em que Rui já consolidou seu nome há muitos anos, desde o seu primeiro livro-- “Máquina de Escrever”, de 1988, ganhador do Concurso Nacional de Contos então promovido pelo Governo do Paraná.

Em “Nem bobo nem nada” só uma pessoa fala, dirigindo-se diretamente a um interlocutor imaginário (“Cara, você precisa ver...”). Essa pessoa é um pintor de paredes, e através dele tomamos conhecimento de seu mundo peculiar, povoado de gente do povo. Estão presentes em seu relato as referências não só à sua atividade profissional, que se intensifica no final do ano, mas também aos familiares (a mulher e seus dois filhos) e principalmente às mulheres com quem se envolve sexualmente, pois sua relação com a esposa já está bem desgastada. Esta se compensa dedicando-se à religião: vira evangélica fanática. O pintor envolve-se com a mulher de um alcoólatra decadente; depois, com a filha dela, que ele viu crescer e reencontra adulta, trabalhando como diarista; aproveita situações favoráveis como a da “dona chique” que lhe contratou os serviços (quando ela se chega mais, o pintor tira partido da ocasião pois “não é bobo nem nada”); envolve-se ainda com prostitutas, uma caixa de supermercado etc. Dentre as mulheres visadas, há também a irmã de criação da esposa que lhe desperta a libido mas não chega a ser sua amante...

Nessa permanente busca de sexo por parte do pintor reside a ênfase maior do enredo, e o sentido do livro (cf. o contexto que explica o seu título). O protagonista, aparentemente, não se interessa mais por futebol nem pelas pescarias do passado nem, seguramente, pela religião da mulher. Seu móvel principal é a busca do prazer sexual, como forma de compensar a sua frustração existencial, familiar, econômica etc.

O pintor vive em Curitiba, o que é indicado por várias referências a bairros e parques da cidade. A ação desse “romancélere” abrange um período de tempo considerável, no mínimo de 4 anos, como se deduz pelas duas menções à idade do filho mais velho. A ação transcorre no tempo presente indicada pelas referências a celular e computador. Quanto aos personagens, ressalte-se que eles não tem nome próprio, são referidos de forma genérica como a “irmã de criação“ ou a “menina” filha da amante etc

Os aspectos mais fortes da obra, a meu ver (além de conseguir manter o leitor interessado no enredo), estão na caracterização do meio social do protagonista, e na linguagem utilizada.

Quanto ao primeiro aspecto, trata-se de gente do povo, composta por “crentes”, gente ingênua enganada pelo pastor (que se aproveita da “irmã de criação” da mulher do pintor), gente que se embriaga com cachaça, que busca atendimento no Hospital de Clínicas, que trabalha como diarista ou caixa de supermercado, que faz jogo do bicho, que põe dente de ouro, que vai a sortista, que faz simpatia com galhinhos de arruda etc

Com relação à linguagem, ela é altamente coloquial, às vezes vulgar, apropriada ao protagonista, cujas 150 falas compõem o livro. Eis por exemplo como se manifesta no capítulo 51:

—A dona se encostou em mim, na varanda. Tava pintando a parede e ela trouxe uma xícara de café. Sempre dizendo que o ex-marido não entendia nada, que ela queria e ele nada. Mulher cheirosa, diferente, tem conversa. Falou difícil. Umas coisas de orgasmo de mulher. Disse que precisa gostar, amar, pra sentir prazer. Não sentia com o marido. Bruto na cama. Chegou em mim. Ainda gostava da outra, mas não sou bobo nem nada, né? (p. 68)

Nota-se em Rui uma certa influência do nosso maior escritor, Dalton Trevisan, no modo como retrata seus personagens ou situações. O pintor revela-se sem compaixão humana em várias ocasiões. Por exemplo, ao recusar-se a dar carona aos parentes da esposa que precisam ir de Pinhais ao Hospital de Clínicas. Também, ao descrever a mulher, cinco anos mais velha, gorda e sem três dentes da frente ou ao retratar cruelmente o cunhado, ex-padre que se torna homossexual e morre de AIDS. A mesma crueza, associada ao sarcasmo, se observa na situação bizarra da dentadura que salta para fora da boca da mulher que vem reclamar de seus serviços. Essa crueza pode atingir os seus limites extremos como ocorre naquela passagem impressiva, do filhotinho de beija-flor retirado do ninho e usado como isca viva numa pescaria...