segunda-feira, 27 de setembro de 2010

EM TORNO DO LIVRO DE HANS STADEN




Hans Staden foi um alemão nascido em Hessen que veio ao Brasil duas vezes, em meados do século XVI, na condição de artilheiro, ou arcabuzeiro, de navios ibéricos. Na primeira viagem veio em um navio português que visitou apenas o Nordeste. Na segunda, que é a que interessa à ótica paranista deste artigo, visitou o Sul do Brasil, em um patacho espanhol que foi dar no Superagui, na costa paranaense, em 24 de novembro de 1550 (1), em vez da ilha de Santa Catarina, para onde se destinava, aí chegando finalmente em 16 de dezembro do mesmo ano (2).

Seu nome ficou para sempre registrado na historiografia brasileira por ter publicado, no ano de 1557, em Marburgo, “Duas viagens ao Brasil”, um livro em que relata as suas impressões sobre esta terra, e os usos e costumes dos índios tupinambás, ou tamoios, que o aprisionaram, tribo hoje extinta, pertencente ao tronco linguístico tupi (3). Com eles conviveu nove meses, correndo o risco de ser devorado nos seus rituais antropofágicos.

O livro, ilustrado com dezenas de xilogravuras, causou muito interesse quando foi lançado, por voltar-se para o Novo Mundo recém-descoberto, satisfazendo a curiosidade europeia sobre nossa terra e a gente que aqui vivia.

Conforme nos informa F.A. Carvalho Franco, em sua introdução e notas, muito informativas, a uma edição do livro de Hans Staden, este veio como soldado de um patacho, chamado “S. Miguel”, comandado pelo capitão Juan de Salazar, que partiu de Sevilha, juntamente com duas caravelas, a cargo de Francisco Bezerra e Juan de Ovando. Esses navios foram enviados às Índias por Diego de Senabria que sucedeu o pai -- falecido ainda na Europa, antes de partir para o Prata -- na condição de “adelantado” da região. Dada a conjuntura da época, Diego julgou conveniente enviar essa expedição antes que a sua própria partisse da Europa com o mesmo destino (4).

Juan de Salazar, o fundador de Assunção em 1537, retornava agora à América de onde partira em 1545, mandado de volta à Espanha, juntamente com o “adelantado” Cabeza de Vaca, em decorrência da rebelião política que reconduziu Domingo de Irala ao poder. Quando seu navio chegou à ilha de Santa Catarina, já havia ali chegado, no mês anterior, a caravela do capitão Bezerra, “que estava então a mando de Cristovam Saavedra”. Da outra caravela, a cargo de Juan de Ovando, “não se teve mais notícia” (5).

Staden refere-se, no cap. 7, da Primeira Parte de seu livro, ao Superagui, segundo ele habitado pelos índios tupiniquins, amigos dos portugueses. Dois destes foram contatados por pessoas de seu navio. Estavam num barco que então encontraram. Eles lhes informaram ser de São Vicente, indicaram onde estavam agora e lhes orientaram quanto à localização da ilha de Santa Catarina para onde rumariam depois.


Anteriormente, Staden fizera menção a um pequeno navio, também com portugueses de São Vicente, que fugiu à sua aproximação, pensando que eles eram franceses. Para Cecília M. Westphalen, o livro de Hans Staden é “a primeira referência que se tem ao litoral paranaense e à presença de vicentinos na sua costa”. (6)

Saliente-se que, próximo ao Superagui, havia um caminho por terra para Cananéia (7). Os índios deste último povoado também eram amigos dos portugueses. Mas os tupinambás ou tamoios, mais ao norte, que aprisionaram Hans Staden em Bertioga, haviam se aliado aos franceses, seus inimigos (Staden ficara encarregado de um forte aí construído pelos portugueses cuja função era impedir os ataques dos tupinambás a São Vicente). Os portugueses acabariam por derrotar posteriormente os franceses e seus aliados, contribuindo assim para a extinção dos tupinambás.

Superagui caía dentro da jurisdição da capitania de São Vicente, situada entre Bertioga e a ilha do Mel, na baía de Paranaguá. A partir daí, para o sul (até Laguna), situava-se a capitania de Santana (8). O Estado do Paraná atual ficava contido, assim, dentro dessas duas capitanias, que couberam respectivamente a Martim Afonso de Souza e a seu irmão, Pero Lopes de Souza. Mas os portugueses não seguiram à risca a delimitação estabelecida pelo Tratado de Tordesilhas, considerando de fato seu limite meridional o Rio da Prata (onde Pero Lopes chegou a instalar um marco indicativo da posse portuguesa da região), o que naturalmente era questionado pelos espanhois. Os dois reinos ibéricos disputavam portanto esse território. Sabiam da importância da sua ocupação efetiva para assegurar os direitos que alegavam ter sobre ele.

A ilha de Santa Catarina sempre foi uma referência importante aos navegadores na costa meridional brasileira ou sul-americana nos primórdios da nossa história. Os espanhois procuraram ocupá-la desde cedo, estabelecendo relações de amizade com os índios da região.

Foi ali que naufragou, em viagem de regresso à Espanha, um dos navios da armada de Solis, considerado o descobridor do Rio da Prata em 1516. Um dos náufragos era Aleixo Garcia, que passaria a viver naquela ilha em contato com os índios, os quais despertaram a sua cobiça ao lhe informar sobre a existência de uma “serra da prata” na parte mais ocidental do continente, fazendo-o decidir-se a percorrer a pé -- com os seus acompanhantes, na maioria indígenas -- todo o território até aquela região e chegar, seis anos antes de Pizarro, ao império inca. Esse caminho trilhado por Garcia em 1524 seria posteriormente seguido por outros aventureiros, a partir da ilha de Santa Catarina, em direção ao oeste. Trata-se do chamado “caminho do Peabiru”, na realidade um sistema de caminhos trilhado pelos indígenas já antes da chegada dos europeus.

Em 1541 Cabeza de Vaca, nomeado “adelantado” do Rio da Prata, resolveu viajar para Assunção, sede de seu governo, percorrendo o mesmo caminho por terra, descartando a opção marítimo-fluvial que dispunha. Como se vê pelo relato dessa viagem nos “Comentários”, ele percorreu boa parte do território atualmente paranaense de leste a oeste. Foi o primeiro branco a contemplar as Cataratas do Iguaçu.

Outros colonizadores espanhois também fariam essa viagem, percorrendo o mesmo território, conforme se deduz do que afirma F.A. Carvalho Franco na sua Introdução, já referida, à obra de Hans Staden.

Em 15 de agosto de 1551 chegaram a Assunção Cristovam de Saavedra e cinco soldados mandados por Juan de Salazar desde a costa catarinense até Assunção a fim de comunicarem ao governador Irala da nomeação do novo “adelantado”, Diego de Senabria, e solicitando víveres e recursos aos membros da expedição que viviam precariamente naquela costa. O enviado de Irala, todavia, não os encontra ali, pois haviam se deslocado para outro lugar da costa, onde por fim o patacho acabou por encalhar e a caravela, naufragar, “nas cercanias do Viaçá”.

Em princípios de 1552 parte dos membros da expedição Senabria, comandados por Afonso Velido e Fernando de Salazar, faz a mesma viagem a pé, por terra (outra parte, na qual se incluía D. Mencia, mãe de Diego de Senabria e também das esposas de Fernando de Trejo e de Cristovam de Saavedra, vai em um batel ali construído, sob o comando de Juan de Salazar, do porto de Viaçá (Laguna) para o de São Francisco. Hans Staden estava entre estes, conforme ele diz no cap. 11 da Primeira Parte de seu livro).

Também a expedição do próprio Juan de Salazar deve ser citada. Ele tinha conseguido chegar a São Vicente, acompanhado de alguns membros da expedição Senabria (o restante dela ficou povoando São Francisco, tendo como dirigente Fernando de Trejo). Salazar buscava inutilmente em São Vicente apoio para a viagem deles até Assunção. Não conseguindo navio para tal viagem, decide ir por terra mesmo até lá. Nessa expedição, juntam-se a ele Cipriano de Góis e seu irmão Vicente de Góis, filhos do donatário da capitania de São Tomé, que teriam levado para Assunção “o primeiro gado daquela região platina” (9). Também foi com Salazar Ruy Díaz Melgarejo que fundaria no Guairá logo depois, em 1557, Ciudad Real e mais tarde, em 1570, Villa Rica del Espiritu Santo. À expedição juntaram-se ainda seis portugueses e uma dúzia de espanhois. Também tomaram parte dela a mulher de Cipriano de Góis e a de Salazar, as duas filhas desta e mais três mulheres casadas. Após cinco meses de viagem atingem o Guairá (que segundo Plinio Ayrosa significa em tupi “o lugar intransponível”) e finalmente Assunção, onde chegaram em outubro de 1555 (10)

F.A. Carvalho Franco cita ainda Fernando de Trejo, outro colonizador a percorrer o referido território a pé. Ele estava encarregado de manter um povoado espanhol em São Francisco do Sul mas, face às dificuldades que encontra, decide abandoná-lo com outros náufragos da armada de Senabria e parte dali, chegando a atingir Assunção em meados de 1556 (11). Outros autores afirmam que por causa desse abandono ele teve que responder a um processo em Assunção, pois o povoamento de São Francisco era um dos principais objetivos da armada de Senabria.

Como se vê por esses exemplos, o caminho por terra para Assunção, a partir das proximidades da ilha de Santa Catarina (trilhado por Cabeza de Vaca), ou da costa catarinense, que cortava o território atualmente paranaense, foi muito seguido nessa época.

Houve também quem fizesse o caminho inverso, desde Assunção até São Vicente, no litoral paulista, caso de Ulrich Schmidl, Ruy Díaz Melgarejo e outros... A propósito, todo o trajeto de Schmidl foi reconstituído por Reinhard Maack (12).

Gostaria de concluir referindo-me ao importante porto de Viaçá da costa catarinense, associado às diversas tentativas de ocupação espanhola da região. Staden referiu-se a ele pelo seu nome indígena Imbeaçã-pe (cap. 12, da Primeira Parte). F.A. Carvalho Franco arrola argumentos que identificam o porto de Viaçá com Laguna ou porto dos Patos. Mas salienta que a historiografia também fala em “país do Viaçá”, referindo-se à região desse porto ocupada pelos índios carijós ou mbiás. Carvalho Franco segue Moisés Santiago Bertoni que em seu livro “La Civilización Guarani”, diferentemente de outros autores, distingue uma nação da outra. Para eles, “país de Viaçá” ou Mbiaçá -- que abrange uma área que se estende “desde o Paraguai até as cercanias de Cananeia, passando ao norte do rio Iguaçu” -- seria dos índios mbiás e não dos carijós (13). Essa área, já se vê, incluía boa parte do território atualmente paranaense...

NOTAS

(1) “Dicionário Histórico-Biográfico do Estado do Paraná”, Curitiba: Chain: Banco do Estado do Paraná, 1991, p.206
(2) Cf “Introdução” de Francisco de Assis Carvalho Franco, a “Duas Viagens ao Brasil” de Hans Staden. São Paulo: Sociedade Hans Staden, 1942, p.7. Servi-me não só desta mas também da edição da L&PM, Porto Alegre, 2008 (“Introdução” de Eduardo Bueno).
(3) “Larousse Cultural. Brasil A/Z”. São Paulo: Editora Universo, 1988, p.828 (verbete “Tupinambá”)
(4) Cf.”Introdução”, op. cit, p. 5
(5) Cf.”Introdução”, op. cit, p. 7
(6) “Dicionário...”, op cit, p. 206
(7) Cf nota de Francisco de Assis Carvalho Franco a “Duas Viagens ao Brasil”, op cit, p. 57, apoiada em Moisés Marcondes-- “Documentos para a História do Paraná”, Rio de Janeiro, 1923, p.34.
(8) Bueno, Eduardo—“Brasil: uma História”. 2ª. ed rev. São Paulo: Ática, 2003- p. 44
(9) “História Geral da Civilização Brasileira” (sob a direção de Sérgio Buarque de Holanda)- São Paulo, DIFEL, 1985- Tomo I- “A Época Colonial”, 1º vol., p.104
(10) Cf.”Introdução”, op. cit, p.9-10
(11) Cf.”Introdução”, op. cit, p. 10
(12) Maack, Reinhard-- "Geografia Física do Estado do Paraná"- 2a ed.- Rio de Janeiro: J.Olympio; Curitiba: Secretaria da Cultura e do Esporte do Governo do Estado do Paraná, 1981- p. 27-35 e mapa
(13) Cf. nota de Francisco de Assis Carvalho Franco a “Duas Viagens ao Brasil”, op cit, p. 68.