quarta-feira, 24 de abril de 2013



Dante e Virgílio no Inferno- Delacroix, 1822


                                     A PROPÓSITO DO “INFERNO”


Introdução ao livro "Sobre a Divina Comédia- Inferno: 
enredo, linguagem, sentido"  disponível  em


       A “Divina Comédia” é um poema narrativo. Dante narra nele aquilo que viu e sentiu em uma viagem imaginária que fez, ainda vivo, pelos três mundos do Além-- o Inferno, o Purgatório e o Paraíso, conforme a concepção da (sua) religião católica.

            A jornada de Dante pelos três mundos é na realidade uma alegoria da sua desejada ascensão espiritual, após um balanço existencial feito no meio da vida (Nel mezzo del cammin di nostra vita- I,1) (em 1300, quando ocorre essa jornada, Dante-autor tinha 35 anos). Para alcançar o Paraíso é preciso que ele percorra um árduo caminho. Ele deve passar primeiro pelo Inferno (onde estão os que sofrem eternamente a punição pelos seus pecados) e o Purgatório (onde estão aqueles que ainda têm esperança de salvação, pois se arrependeram dos pecados antes de morrer). É guiado nessas duas etapas por Virgílio, o poeta latino de quem era admirador, e que representa no poema a Razão Humana. Por isso, ele não pode guiá-lo até o Paraíso, tarefa que é atribuída a Beatriz, símbolo da Fé, o outro requisito indispensável para a desejada salvação da alma. Essa é a primeira das alegorias, num poema que faz extenso uso delas, como se indicará adiante, no texto relativo a cada um dos cantos do Inferno (também aí se destacarão as principais comparações ou símiles, as metáforas etc). 

            No “Inferno”—objeto deste trabalho – Dante relata sua descida a esse  mundo subterrâneo, dividido em nove círculos, que se afunila até o centro da Terra, onde está Satã ou Lúcifer. Destaca os sofrimentos que foram impostos a essa gente desesperada que aí é punida pelos seus pecados. Quanto mais baixo o círculo, mais grave são os pecados neles punidos e maiores os sofrimentos dos pecadores. O Inferno tem a forma de um cone invertido, que desce até o centro da Terra, como já foi dito. Esse centro da Terra é também o centro do universo, pois na época prevalecia a concepção astronômica de Ptolomeu, hoje ultrapassada.

Canto X- Farinata- G. Doré


            O relato dessa descida é povoado de seres fantásticos (eríneas, harpias, centauros, gigantes etc) e situações insólitas, que se renovam o tempo todo, graças à rica imaginação de Dante. A história progride rapidamente, em 34 cantos curtos, com cerca de 150 versos cada um. À medida que os dois poetas avançam em sua jornada, encontram novos tipos de pecadores, sofrendo a punição correspondente ao seu pecado, vinculados àquele círculo (ou zona dentro dele) que está sendo visitado no momento. Essa agilidade da ação, a linguagem utilizada e a frequência dos diálogos -- mantidos entre Dante e seu guia ou entre ele e os personagens que vai encontrando em sua jornada até o fundo do Inferno -- tornam a leitura fácil e interessante. 

                   O Canto I do “Inferno”, que nos introduz a toda obra, é essencialmente alegórico.  O poeta se encontra extraviado na selva oscura (ou selva selvaggia) (I,2 ou 5) da vida pecaminosa quando se depara com a sombra de Virgílio, que o guiará a partir de então, possibilitando que Dante avance em sua jornada de modo a evitar as três feras que o ameaçam-- um leopardo, um leão e uma loba (lonza, leone, lupa- note-se a aliteração). Para muitos intérpretes, esses animais representam os pecados punidos nas três divisões em que se agrupam os nove círculos do Inferno, onde estão os que pecaram pela incontinência (círculos 2º ao 5º; o círculo 6º é dos heréticos, numa área de transição), pela violência (círculo 7º) e pela fraude, comum (círculo 8º) ou traiçoeira (círculo 9º). Assim, o leopardo representa a incontinência, o leão a violência e a loba a fraude. A classificação dos pecados de Dante, exposta no canto XI, baseia-se na Ética de Aristóteles, o “mestre dos homens que sabem” (/.../ maestro di color che sanno- IV, 131) (esses filósofos da Antiguidade, assim como todas as pessoas que viveram antes de Cristo, como Virgílio, estão no 1º círculo, no Limbo, para onde vão também os que morrem sem ser batizados. Por outro lado, no vestíbulo do Inferno, anterior ao  1º círculo, estão os tíbios ou ignavos, que não fizeram nem o bem nem o mal durante a vida). 

                Existe uma hierarquia de pecados. São menos graves os pecados da incontinência, pois consistem em usar, embora de forma desmedida, as capacidades naturais humanas. Mas os da violência e fraude usam a razão-- um dom divino, temporário (porque no Além as almas perdem o livre-arbítrio) – para o mal.

            Os círculos dos pecadores da incontinência abrangem os luxuriosos, os glutões, os iracundos/ rancorosos e os avarentos/pródigos. Por ofenderem menos os céus, Dante-autor os deixa fora da cidade de Dite, ou de Lúcifer (Dite é o nome latino, pagão, para designar o rei do mundo dos mortos). Virgílio e seu discípulo chegam até ela após percorrerem o círculo 5º, dos iracundos/rancorosos. Os heréticos estão dentro da cidade de Dite.

            Dentro dos limites dessa cidade (a città dolente) incluem-se o 6º, 7º, 8º e 9º círculos. O da violência, o 7º, abrange três voltas ou giros: o dos violentos contra o próximo e seus bens (assassinos, saqueadores), o dos violentos contra si mesmo e seus bens (suicidas, perdulários) e dos violentos contra Deus e a natureza (blasfemadores, sodomitas, usurários).

            O 8º círculo, da fraude comum, é formado por dez fossas ou bolsas -- o Malebolge --, uma para cada tipo de fraude. Abrange os rufiões/sedutores, bajuladores, simoníacos, advinhos e feiticeiros, os praticantes da barataria (tráfico de influência), os hipócritas, ladrões, maus conselheiros, semeadores de discórdias e falsificadores (de metais, pessoas, moedas e palavras).   
 
            Por fim, o 9º círculo é o dos piores fraudulentos, os que traíram os parentes, a pátria, os convidados/associados e os benfeitores. Para cada um desses quatro tipos de traição, Dante reserva uma área do 9º círculo, chamadas respectivamente de Caína, Antenora, Ptolomeia e Judeca. No fundo do Inferno não há fogo mas gelo. Ele é gelado em consequência do vento muito frio originado pelo bater de asas de Lúcifer, que gela o Cocito, cujas águas assim diferem daquelas dos outros três rios do Inferno (o Aqueronte, o Estige e o Flegetonte). É aí, na Judeca, que está Lúcifer, encravado no gelo, um monstro enorme com uma cabeça de três faces, caricatura da Santíssima Trindade. Em suas bocas são triturados Judas (o mais punido), Brutus e Cássio, os que traíram seus benfeitores (Jesus Cristo e Júlio César), representantes das duas dimensões mais importantes da vida social para Dante, a religiosa e a política, a Igreja e o Império.

            Estão presentes, nos diversos cantos do Inferno, seres míticos, ou monstros,criações das mais originais da arte dantesca – porque colocadas no limiar de um círculo do inferno – parecem a um tempo  a estátua do vestíbulo de um palácio e a síntese de seu interior”, nas palavras de Attilio Momigliano[1].   Assim, no  2º ao 5º círculo,  encontramos Minós (canto V), que indica, pelo número de vezes que agita sua cauda, o círculo do inferno para onde deve ir o recém-chegado; Cérbero, com três bocas (canto VI, dos gulosos); Pluto, deus da riqueza na mitologia grega (canto VII, dos avarentos e perdulários; também dos iracundos)  e  Flégias -- que irado ateou fogo ao templo de Apolo --, barqueiro do Estige (canto VIII, dos iracundos). No círculo 7º, dos violentos, os monstros são meio animais meio homens como os centauros, o Minotauro e as harpias (cantos XII a XVII), imagens apropriadas da bestialidade humana. No círculo 8º, do Malebolge, estão os demônios. Na passagem para o 9º círculo, os gigantes. E neste último círculo, está Lúcifer (canto XXXIV), que ficou preso no gelo do centro da Terra quando despencou do Céu.  Ele era o mais belo dos anjos (Lúcifer significa o que transporta luz) mas por soberba rebelou-se contra Deus e foi expulso do Céu juntamente com os seus partidários, tornando-se essa figura medonha que habita a região mais profunda do Inferno.

             Tipicamente, cada canto do “Inferno” começa com uma comparação  que  ilustra o que Dante está vendo ou sentindo ao visitar aquele determinado círculo, ou zona dele, onde estão os condenados, sofrendo a punição que lhes foi imposta. Em geral Dante pergunta a um deles quem ele é. Os condenados, frequentemente, são gente da Florença de sua época, ou do passado recente, como os que participaram da luta entre guelfos e guibelinos do século XIII (Dante usa as peculiaridades da política florentina ou de outras questões locais a fim de extrair delas verdades universais). Para obter resposta do condenado promete falar bem dele quando voltar ao mundo dos vivos, pois os condenados são sensíveis a esse argumento, mostrando que valorizam sua boa reputação em nosso mundo. Virgílio informa aos habitantes do Inferno que Dante é vivo ainda e que o está visitando autorizado pela vontade divina, o que supera vários obstáculos que ele encontra pelo caminho. Também esclarece dúvidas de seu discípulo sobre o Inferno (pois ele já desceu antes ao mundo dos mortos, o reino de Pluto). Cada canto representa uma etapa a ser vencida nessa jornada dos dois poetas rumo ao centro do inferno, onde está Lúcifer.

            Dante identifica os pecadores, que ele vai encontrando em sua perambulação. O que esses personagens lhe contam, não só sobre si mas sobre terceiros, e a situação em que se encontram lhe fornecem material para compor as diversas cenas do poema, algumas inesquecíveis.

            Assim como ocorre com a linguagem utilizada pelo poeta, que pode assumir diferenças entre os cantos, umas mais e outras menos ásperas, também as cenas variam entre si. Isso pode ser notado na diferença entre os três cantos mais famosos do “Inferno”, os que incluem os episódios de Paolo e Francesca (canto V), de Ulisses (canto XXVI) e do conde Ugolino (canto XXXIII). Enquanto os dois primeiros apresentam cenas mais suaves, apesar de seus protagonistas estarem sofrendo o castigo que lhes foi imposto, o terceiro é mais grotesco e chocante. 

            Paolo e Francesca são os amantes que, lendo juntos um romance medieval, tomam consciência de seu amor. Ambos foram mortos pelo marido dela (e irmão mais velho de Paolo). Sua punição é aquela do círculo dos luxuriosos. Vagueiam juntos, eternamente, no 2º círculo, transportados por um vento muito forte.

Paolo e Francesca
            O episódio de Ulisses mostra como a grande arte pode ser insólita, surpreendente (para Poe, a surpresa é qualidade essencial à poesia). Na 8ª fossa do Malebolge, os condenados ardem dentro das chamas. De repente, uma delas tremula e sua ponta, movendo-se como uma língua, começa a falar. É Ulisses, que passa então a relatar a sua história. Esse relato difere da história narrada por Homero, pois o herói grego aqui não retorna a Ítaca, para junto de Penépole e sua família, mas prossegue viagem, aventurando-se pelo mar desconhecido, além do estreito de Gibraltar  (limite do mundo antigo). Sua justificativa está contida nas palavras que diz para convencer os companheiros: “não fostes feitos para viver como brutos/ mas para buscar virtude e conhecimento” (fatti non foste a viver come bruti,/ ma per seguir virtute e canoscenza- XXVI, 119-120). Lançam-se assim ao mar tenebroso, e nele perecem.  

            O Canto XXXIII, que contém a história de Ugolino, já inicia assim:

La bocca sollevò dal fiero pasto
quel peccator, forbendola a' capelli
del capo ch' elli avea di retro guasto (v. 1-3)

A boca levantou do fero pasto/ aquele pecador, limpando-a nos cabelos/ da cabeça que ele roía atrás.

            Os dois condenados envolvidos nessa cena, que se passa na Antenora (área do 9º círculo onde estão os traidores políticos) são o conde Ugolino della Gherardesca, guibelino, ex-principal magistrado de Pisa, e o outro, cuja cabeça é devorada, é o arcebispo Ruggieri, que o traiu, prendendo-o numa torre, em Pisa, onde o deixou morrer de fome, juntamente com seus filhos. No final, um verso ambíguo sugere o que de pior poderia acontecer nessa situação em que o conde faminto está rodeado dos cadáveres do filhos: “Depois, mais do que a dor, pôde o jejum” (Poscia, più che 'l dolor, poté 'l digiuno- v.75).


Ugolino- Henry Fuseli

            A “lei do contrapasso” (a correspondência da punição recebida com o pecado cometido) manifesta-se no episódio de forma bem evidente: assim como Ruggieri fez Ugolino morrer de fome na torre, agora no Inferno a punição eterna dele é servir de pasto ao conde. 



             Bertrand de Born- G. Doré

            Há outras cenas grotescas que ficam gravadas em nossa memória:  por exemplo, a de Bertrand de Born (canto XXVIII), um dos “semeadores de discórdia”, que caminha segurando a própria cabeça, separada do corpo, como se fosse uma lanterna; a do canto XXX, dos falsificadores de metais, em que um dos condenados, raivoso, crava os dentes na nuca de Capocchio; a referência, numa dada comparação no Canto XXVII, a um boi de bronze que mugia, o qual, como depois o leitor fica sabendo, tratava-se de um antigo instrumento de tortura e morte, em que o boi era aquecido com uma pessoa dentro dele) etc


Canto XXX-A.W.Bouguereau, 1850
            No Canto XX, dos feiticeiros e advinhos, o castigo destes, pela “lei do contrapasso”, é, ironicamente, ter a cabeça voltada para trás, de modo que não podem agora nem ver o que está à sua frente, só o que está atrás. Dante-autor explora visualmente tal imagem insólita, dirigindo-se ao leitor com familiaridade (aliás, esta é outra característica formal do poema).

            O “Inferno” contém até cenas de conteúdo intencionalmente repugnante (para acentuar a sordidez do local). Na 10ª. fossa de Malebolge (canto XXIX) estão os falsários, cujos lamentos são tão horríveis que fazem Dante tapar os ouvidos com as mãos. Além disso, eles exalam um mau cheiro insuportável (“/.../ e tal fedor daqui subia/ como costuma sair de membros apodrecidos” (e tal puzzo n’ usciva/ qual suol venir de le marcite membre - v.50-51). Mais adiante, Dante-autor destaca dois dos condenados, que estavam sentados naquele lugar, apoiando-se um no outro, com todo o corpo coberto de crostas.  E explora aqui esta  imagem impressiva:

come ciascun menava spesso il morso
de l’unghie sopra sé per la gran rabbia
del pizzicor, che non ha più soccorso;

e sì traevan giù l’unghie la scabbia,
come coltel di scardova le scaglie
o d’altro pesce che più larghe l’abbia (v. 79-84)

/.../ cada um investia contra si mesmo/ as unhas, pela grande comichão/ que sentiam, pois não havia outro jeito;
e assim desbastavam as crostas/ como a faca tira as escamas da carpa/ ou de outro peixe, com mais largas escamas.

            Assim, Dante mostra que o poético não abrange só o sublime, mas todas dimensões da condição humana, até mesmo o asqueroso.

            Outro exemplo ocorre no Canto XVIII, dos bajuladores, que estão no fundo da segunda fossa do Malebolge, imersos nas fezes: Diz Dante:

Quivi venimmo; e quindi giù nel fosso
vidi gente attuffata in uno sterco
che da li uman privadi parea mosso.

E mentre ch’ío là giù con l’occhio cerco,
vidi un col capo sì di merda lordo,
che non parëa s’ era laico o cherco.  (v. 112-117)

Ali chegamos; e lá no fosso/ vi gente chafurdada em tal esterco/ que parecia provir de privadas humanas.
E enquanto o fundo com os olhos investigava,/ vi um com a cabeça tão suja de merda/ que não distinguia se era leigo ou clérigo.

            Mas também há cenas de natureza diversa, como a dos usurários, referidos no Canto XVII. Eles cumprem pena no 7º círculo, na área dos que praticaram violência contra Deus pela atividade estéril, antinatural, que desenvolveram. Estão sentados num areal, sob uma chuva de fogo, com os olhos permanentemente voltados para as bolsas penduradas em seus pescoços, onde consta a cor e o emblema das famílias a que pertencem. Pelas características heráldicas desses emblemas, que Dante cita na sequência, o leitor, ou o ouvinte, medieval desses versos devia identificar  facilmente as famílias de usurários famosos da época (o que não é o nosso caso). 

            Dante-autor faz a crítica à usura no Canto XI, apresentando uma argumentação filosófica e religiosa que certamente reforçava aquela da burguesia comercial italiana de então contra os usurários. No Canto XVI, à pergunta de Jacopo Rusticucci sobre a situação atual da sua cidade, Dante assim se refere a Florença, permitindo-nos entrever as transformações econômicas que se processavam então na Europa do final da Idade Média, do capitalismo em formação:

La gente nuova e i sùbiti guadagni
orgoglio e dismisura han generata,
Fiorenza, in te, sì che tu già ten piagni. (XVI, 73-75)

A gente nova e os súbitos ganhos/ orgulho e excessos em ti originaram,/ ó Florença, que por isso já choras.

            O “Inferno” envolve em seu enredo figuras mitológicas, incorporando ao poema as histórias curiosas e singulares a respeito dessas figuras. Todavia, Dante não reconta as histórias, apenas faz ligeiras menções a elas, dando-as como subentendidas. No Canto XII, por exemplo, são referidos o Minotauro e os centauros. No Canto XXIV Dante compara o renascimento de um condenado à fênix mitológica. Essa frequente alusão à mitologia clássica, em alguns casos explorando mais detidamente os pormenores de suas lendas, encanta o leitor moderno como deve ter encantado o antigo. No  Canto XXXII Dante invoca as musas para auxiliá-lo, aquelas “que ajudaram Anfião a murar Tebas” (ch’aiutaro Anfïone a chiuder Tebe- v.11).  Anfião  recebeu das musas um poder encantatório: ao tocar a sua lira as pedras da natureza se moveram e formaram por si mesmas o muro de Tebas. A lenda mitológica está sempre subentendida nos versos de Dante, que se integra ao que este diz, contribuindo para reforçar o ambiente onírico, mágico, do poema. Ele também pressupõe as histórias de vida dos personagens que vai citando, seus contemporâneos ou não.

            Dante mistura personagens reais, históricos (seu mestre Brunetto Latini, o papa inimigo Bonifácio V, Brutus, Cássio), com outros fictícios: literários (Ulisses, da “Ilíada” e “Odisseia”, Eneas, da “Eneida”), da mitologia greco-latina (Orfeu, o Minotauro, Pluto) ou judaico-cristã (i.e. da Bíblia) (Caifás, Raquel). No Canto X há uma simples menção ao “Cardeal” e a Frederico II, sem que Dante dê mais informação sobre eles (a não ser o contexto do próprio canto, que trata dos heréticos). Para nós, leitores do século XXI, é necessário ler as notas dos comentaristas (que na maioria das vezes dizem mais ou menos o mesmo, os atuais se apoiando nos mais antigos) para percebermos todo o alcance dos versos, ampliando assim o prazer estético que eles proporcionam.

            Dante não se mostra preconcebido contra os sodomitas (cantos XV e XVI).  Pelo contrário, seus comentários relativamente a Brunetto Latini (a quem se mostra reverente e chama de mestre) e aos três líderes guelfos que aparecem no Canto XVI revelam que ele tinha muita consideração por esses personagens, de modo que o pecado que cometeram não interferia em sua avaliação deles. Isso deve atenuar as críticas atualmente feitas ao poeta florentino, que o acusam de ser homofóbico; mas não há como atenuar a acusação de que ele é anti-islâmico: sua postura é inequivocamente católica, e os muçulmanos na época eram seus inimigos declarados...  Uma crítica mais antiga é a de Nietzsche, que chama Dante de “hiena a versificar entre as sepulturas”, conforme Borges. Mas Dante, como disse este, não se compraz com a dor[2]. Não se compraz com a crueldade dos castigos que foram impostos aos pecadores. Ele procura ser um católico coerente. Encara a questão do pecado e sua punição de modo objetivo, de acordo com a doutrina de sua religião, mesmo que tenha simpatia pelo condenado (como ocorre, por exemplo, com Francesca, a amada de Paolo, ou o próprio Brunetto). 

            Dante preferiu usar em sua “Comédia” o italiano falado pelo povo do que o latim dos eruditos. Ele explora a sonoridade das palavras, da qual a rima é o exemplo mais evidente, mas não o único (ele adota o esquema ABA BCB CDC... para as rimas dos versos decassílabos, que formam os tercetos do poema). Ele usa também assonâncias, aliterações, sinestesias, polissíndetos, enfim joga com todos os elementos formais da linguagem para alcançar determinados efeitos estéticos em sua poesia, isso sem falar nas alegorias, comparações, metáforas etc (as mais importantes das quais serão destacadas adiante, no comentário a cada canto).

            Dante-autor quer usar linguagem apropriada ao contexto em que se situa. No Canto XXXII, ele afirma que gostaria de ter “rimas ásperas e rouquenhas” (rime aspre e chiocce- v.1) para descrever uma dada situação no Inferno, o que revela a sua preocupação permanente em buscar a forma poética mais adequada ao seu objeto. Assim, o “Inferno” apresenta uma linguagem que se quer áspera, rude, que será diferente daquela adotada no “Paraíso” (a propósito, o nome de Deus nunca é mencionado no “Inferno”. Os personagens usam circunlóquios para nomeá-lo).

            Dante não tem falsos pudores, constrangimentos, em sua maneira de se expressar. É direto e vigoroso. A expressão do mundo baixo, vil, do Inferno, em que descreve situações degradantes e até repugnantes, se faz por uma linguagem que chega a ser chula, o que não se esperaria num poema de temática religiosa. Isso porém só ocorre em alguns cantos, que deixam, todavia, uma forte impressão no leitor. Na maioria deles, a linguagem é mais ou menos neutra, enquanto o que choca mais são as cenas descritas, de caráter grosseiro ou mesmo repugnante, como vimos acima.

            No Canto XVIII, Dante coloca os bajuladores num poço de fezes (cf. referência acima), considerando tal castigo o mais adequado para o seu pecado, conforme a lei do contrapasso. Virgílio no final do canto sugere a Dante olhar a bajuladora Taís mais adiante. Quer que ele veja a face

di quella sozza e scapigliata fante
che là si graffia con l’unghie merdose,
e or s’accoscia e ora è in piedi stante.

Taïde è, la puttana /.../  (v.130-133)

daquela suja e desgrenhada rameira/ que lá se arranha com suas unhas cheias de merda,/ e ora se agacha, ora se levanta.

É Taís, a puta /.../

            No Canto XXVIII, dos que semearam a discórdia, vemos Maomé com o corpo aberto, fendido, mostrando as vísceras. Dante vê aproximar-se alguém

rotto dal mento infin dove si trulla.

 Tra le gambe pendevan le minugia;
la corata pareva e 'l tristo sacco
che merda fa di quel che si trangugia. (v.24-27)

rasgado desde o queixo até onde se peida.
Por entre as pernas pendiam os intestinos;/ apareciam as vísceras e o triste saco,/ que merda faz daquilo que se engole.

            Porém, a linguagem utilizada também pode ser mais sutil. Assim, no Canto XV, dos sodomitas, por exemplo, Dante usa de um jogo de palavras ao referir-se ao bispo de Florença que o papa, transferiu, pela sua conduta escandalosa, do Arno ao Bacchiglione, “onde deixou os dissolutos membros” (dove lasciò li mal protesi nervi- v.114), i.e., morreu. Segundo os comentaristas, a expressão mal protesi nerve  contém um intraduzível jogo de palavras, pois nervi pode ser traduzido como o “órgão sexual masculino” e protesi como “ereto”, voltado para propósitos antinaturais (mal); mas também nervi pode ser “nervos” e mal protesi “dissolutos”.

            Usar a linguagem chula era uma decorrência da opção que Dante fez por usar a linguagem do povo. Também adota seus usos e costumes. No  Canto XXVI, ele afirma que “se próximo ao amanhecer se sonha o vero” (Ma se presso al mattin del ver si sogna- v.7), conforme a crendice popular, logo cairão sobre sua cidade natal os males previstos ali mencionados. Dante “como poeta do mundo secular” (Auerbach) incorpora tal crendice a seus versos, tornando-os desse modo mais próximos do gosto do povo de sua época. Saliente-se que não só a linguagem por palavras chulas é usada. Também é usada a linguagem por gestos:

1) obscenos e blasfemos, quando Vanni Fucci faz figas a Deus, no início do Canto XXV. Como consequência, ele é imediatamente atacado pelas serpentes;

 2) grotescos e hilários, pela atitude do diabos no Canto XXI, que trata dos que praticaram a barataria (tráfico de influência). A certa altura do canto, o zombeteiro (diabo) Scarmiglione ameaça espetar Dante no traseiro, mas Malacoda manda-o aquietar-se. Por outro lado, no final deste canto, uma escolta de dez demônios vai acompanhar os dois poetas. Os diabos antes fizeram um sinal com a língua e os dentes para Barbariccia, e este em resposta “fizera do cu trombeta” (ed elli avea del cul fatto trombetta- v. 139), convocando os companheiros para iniciar a jornada. O canto seguinte, Canto XXII, é movimentado pela ação dos diabos. Eles vigiam os condenados por barataria, imersos no piche fervente, porém brigam entre si e acabam caindo nesse fosso.

Lúcifer- G.Doré

            Além da linguagem, outros aspectos formais devem ser destacados.

            Já vimos que um dos fatores que tornam mais fácil a leitura desse poema consiste na frequência dos diálogos, mantidos não só entre Dante e Virgílio, mas também entre Dante e os personagens que encontra ao longo de sua insólita jornada, que tem um final feliz (a chegada no Paraíso, a salvação da alma). Aliás, para uns, essa narrativa dramática se chama “comédia” por causa desse final feliz. Mas para outros, como Attilio Momigliano, Dante a chamou assim por “estar escrita num estilo claro, característica distintiva, segundo as doutrinas do tempo, da composição chamada ‘Comédia’[3].

            Percebe-se, pelo modo como os versos descrevem as cenas ou pelo uso de diversos recursos pelo autor (alegorias, símiles etc presentes em todos os cantos), que a poesia de Dante é essencialmente visual. É de se estranhar, por isso, que até hoje não exista um grande filme baseado nesse poema fascinante, ao contrário do que ocorre com as artes plásticas.

            De um ponto de vista estritamente religioso, os sofrimentos infligidos aos pecadores, no Inferno (se tal concepção fosse verdadeira), seriam impostos sobre as almas deles, e não sobre os seus corpos. Não seriam sofrimentos físicos. Mas é dessa forma que são tratados no poema. Assim, algo essencialmente abstrato reveste-se de um caráter concreto, é materializado, descrevendo-se uma situação equivalente, ou análoga, à verdadeira, na concepção católica. Qual a vantagem desse procedimento? é a de que ele permite ao poeta explorar todo o seu potencial  visual, plástico, na descrição dos horrores do Inferno, sentidos, por empatia, pelo leitor (ao qual Dante, muitas vezes, se dirige diretamente, acentuando assim o seu caráter  de verossimilhança ). Essa é uma razão a mais para o fascínio que o poema exerceu ao longo dos séculos. 
            Na “Comédia” os mortos têm capacidade de prever o que vai acontecer (mas não sabem o que está acontecendo na atualidade). Como a ação do poema se passa em 1300 (a jornada no Inferno inicia na Quinta-Feira Santa e se conclui no Domingo de Páscoa) e ele foi começou a ser escrito em 1307-1308[4], Dante usa o artifício de fazer com que os condenados prevejam aquilo que de fato já ocorreu. Estão nesse caso as previsões de Ciacco, no Canto VI, v.64 e seg., sobre as lutas políticas entre guelfos negros e brancos em Florença, e as consequências trágicas daí advindas para a vida de Dante (que era um guelfo branco).

            No Canto XXVIII, Dante evoca uma série de eventos ocorridos na Apúlia (i.e. na Itália meridional) que produziram muito derramamento de sangue. Ainda que se reunissem todas as vítimas das lutas aí travadas, com seus corpos mutilados, isso não igualaria ao que o poeta diz ter visto na nona “bolgia”, a dos “semeadores de escândalos e de cismas” (seminator di scandalo e di scisma- v.35). Dentre as lutas mencionadas, cita a “longa guerra/ que de anéis fez tantos despojos” (la lunga guerra/ che de l' anella fé sì alte spoglie- v.10-11), ou seja a segunda guerra púnica, em que Anibal levou para Cartago uma pilha de anéis retirados dos romanos abatidos. Note-se a maestria formal de Dante-autor que usa um pormenor- o anel, seu acúmulo- para indicar indiretamente toda a magnitude da carnificina.

            No início do Canto XXX destaque-se a força expressionista da comparação, quando Dante refere-se a Troia, após sua derrota pelos gregos. Lá, a rainha Hécuba foi feita prisioneira e, louca de dor ao ver os filhos mortos, ladrou como um cão, “tanto a dor deformou a sua mente” (tanto il dolor le fé la mente torta- v. 21).

            Algumas referências indiretas ocorrem no poema decorrentes do fato de Dante-personagem ainda estar vivo, especialmente ao seu peso. E o modo como Dante-autor as faz, em contraste com as sombras que vai encontrando no Inferno, o auxilia a criar um clima “sobrenatural” muito sugestivo. No Canto XII, aproveitando a desorientação causada pela fúria do Minotauro, os dois poetas avançam por uma passagem e Dante nota que as pedras se moviam quando ele pisava nelas, “pelo peso diferente”. Depois, quando os dois se aproximam do centauro Quíron, este diz:

/.../ “Siete voi accorti
che quel di retro move ciò ch'el tocca?
Così non soglion far li piè d'i morti.” (v. 80-82).

Vós notastes/ como o de trás move aquilo que toca?/ Isso não costuma fazer os pés dos mortos”


            Certamente a conclusão mais interessante a que se pode chegar nessas considerações, levando em conta o sentido geral da “Divina Comédia”, exposto no início deste texto, e o desdobramento do poema (cujo objetivo último é convencer os leitores da verdade de sua religião), é a de que Dante é um poeta engajado. Ele estava bem consciente disso quando disse:

O voi ch’avete li’ntelletti sani,
mirate la dottrina che s’asconde
sotto ‘l velame de li versi strani.  (IX, 61-63) 

O vós que tendes o intelecto são/ observai a doutrina que se esconde/ sob o velame desses versos estranhos.

            Ele procurou convencer o seu leitor pelo medo da punição do pecado, tão expressivamente descrita no Inferno:


O vendetta di Dio, quanto tu dei
esser temuta da ciascun che legge
ciò che fu manifesto a li occhi mei!  (XIV, 16-18)

Ó vingança de Deus, quanto tu deves/ ser temida por qualquer um que leia agora/ aquilo que foi manifesto aos olhos meus!

            Dante é assim um poeta comprometido com a defesa de uma concepção religiosa, católica, do mundo, o que prova que é possível haver simultaneamente engajamento a uma causa e grande poesia. Não importa se sua causa é discutível. O importante é que o poeta empenhou-se em defender a causa em que acreditava (a opção de Dante pela língua falada pelo povo, e não pelo latim dos eruditos, deve estar relacionada também a esse engajamento).

              O fato de ser católico, todavia, não impede Dante de fazer uma crítica violenta à Igreja de seu tempo. Ele ansiava pelo retorno à simplicidade e ao idealismo da Igreja primitiva, anterior à conversão do imperador Constantino, que a dotou de poder temporal. Já no primeiro canto do “Inferno” Dante faz uma crítica dura à loba, que alguns comentaristas interpretam como sendo à Cúria romana. E no Canto XIV, dos blasfemadores (violentos contra Deus), na alegoria do “grande homem de Creta”, a Igreja é o pé direito, de material mais frágil (terracota). No Canto XIX, Dante trata dos simoníacos, não poupando fustigadas nos que vendem as coisas sagradas. Coloca-os no 8º círculo do Inferno (terceira vala do Malebolge). Esse canto contém uma alegoria exclusiva da Igreja Católica que envolve sua crítica numa linguagem contundente. Em sua censura Dante-autor cita S.João Evangelista:

Di voi pastor s'accorse il Vangelista,
quando colei che siede sopra l'acque
puttaneggiar coi regi a lui fu vista;

quella che con le sette teste nacque,
e da le diece corna ebbe argomento,
fin che virtute al suo marito piacque. (v.106-111)

De vós pastores ocupou-se o Evangelista/ quando viu aquela que se assenta sobre as águas (a Igreja)/ prostituir-se com os reis;
aquela que nasceu com sete cabeças/ teve a força e o apoio de dez cornos,/ enquanto a virtude agradava ao seu marido (o papa)

Atente-se para a linguagem peculiar utilizada: “puttaneggiar coi regi”... Segundo os comentaristas, essa alegoria foi inspirada numa figura do Apocalipse. As sete cabeças representam os sete sacramentos e os dez cornos, os dez mandamentos.

            O engajamento da poesia de Dante a uma causa é animador para todos nós que entendemos a poesia como algo mais do que simples jogos verbais, formalísticos e divertidos como muitos a concebem atualmente (há até os que negam a própria existência do verso). Compartilhamos da opinião de que a poesia deve ter um sentido maior, dado por versos substanciosos, de conteúdo humanista, os quais, por outro lado, não precisam ser estranhos, necessariamente, daquela dimensão lúdica... 

NOTAS


[1] Momigliano, Attilio-- “História da Literatura Italiana”. S.Paulo: Instituto Progresso Editorial S.A., 1948, p. 41-42. 
[2] Borges, Jorge Luis- “Sete Noites” in “Obras Completas”. São Paulo: Globo, 1999- v.3, p. 236. 
[3] Momigliano, Attilio-- “História da Literatura Italiana”, op cit, p. 45 
[4] Mandelbaum, Allen- “The Divine Comedy of Dante Alighieri- Inferno”, op cit, p. I.


Recursos on line:


-No site abaixo, da Universidade de Princeton- USA (“Princeton Dante Project”), que contém muita informação interessante sobre a “Divina Comédia”, poderão ser ouvidos os versos originais do “Inferno”: 



-Alguns sites que mostram obras de arte inspiradas pela “Divina Comédia”:

(ilustrações de Gustave Doré, Sandro Botticelli e Salvador Dalí)  

(ilustrações para o “Inferno” por Johannes Stradanus, Federico Zuccari  e outros artistas, desde o século 16)

(ilustrações de William Blake para a “Divina Comédia”)

(ilustrações de Salvador Dalí para o “Inferno”)
(coletânea de ilustrações inspiradas pela “Divina Comédia” ao longo dos séculos)