segunda-feira, 9 de junho de 2014





“HISTÓRIA DO CERCO DE LISBOA”

                                                                                          

            É sabido que na obra literária forma e conteúdo compõem um todo inseparável. O artista da palavra, ao criar um conteúdo, está ao mesmo tempo criando a forma que melhor o expressa. No caso desse livro de Saramago,  publicado pela primeira vez em 1987, a forma encontrada destaca-se pela sua originalidade e salienta muito bem as questões que levanta para a reflexão do leitor.  Que se depara com uma técnica narrativa inovadora e uma linguagem cativante, apesar dos tropeços na leitura devidos não só ao português de Portugal mas também às suas ressonâncias medievais...

            O autor narra duas histórias simultaneamente. A primeira é a de Raimundo Silva, que trabalha há muitos anos para uma editora e acaba de revisar um livro relativo ao cerco de Lisboa, quando a cidade estava em poder dos mouros e foi reconquistada pelos portugueses com auxílio dos cavaleiros cruzados. Mas o veterano revisor decide, intencionalmente, alterar uma palavra do texto original, substituir um sim por um não, de modo a negar o apoio dos  cruzados à reconquista da cidade. Esse ato, aparentemente gratuito, está na base de todo o desenvolvimento futuro da trama e define, a meu ver, o significado maior da obra...  

            Raimundo não será demitido da empresa em que trabalha por causa dele. E atrairá a atenção da chefe dos revisores, cargo recém criado na editora, certamente para evitar que novas falhas desse tipo ocorram no futuro. Ela se chama Maria Sara, e os dois acabarão por se envolver amorosamente, mais por iniciativa dela, haja vista os receios e retraimento desse homem de meia idade que, apesar de atraído por ela, tem dificuldade de expressar seu sentimento.   

            A outra história narrada no livro é a do cerco de Lisboa excluindo a ajuda dos cruzados à sua reconquista, que Raimundo passa a escrever, por sugestão da arguta Maria Sara, de forma bem realista, sem triunfalismo. É uma história coerente com a alteração que fez na obra historiográfica cuja revisão esteve a seu encargo. Assim, o livro de Saramago narra essa outra história em processo de elaboração, paralelamente à da vida monótona do revisor, vida essa que vai ganhando cor à medida que evolui o seu caso de amor com Maria Sara.

            A primeira história progride mas em certo momento é substituída pela segunda. Logo adiante, porém, a primeira é retomada. E assim o livro prossegue até o final, intercambiando-se as histórias. A ação da obra passa-se portanto em dois tempos e dois espaços: o nosso próprio tempo e o de 1147, o espaço da Lisboa contemporânea e o da cidade no passado.  Em 1147 Portugal está nos primórdios de sua história. Ainda reinava seu primeiro rei, D. Afonso Henriques, aliás comandante das tropas que estão sitiando Lisboa (ele vem de uma outra reconquista, a de Santarem).  Quanto ao espaço, a obra oscila entre a Lisboa contemporânea de Raimundo Silva, e suas inúmeras referências a determinados locais da cidade de importância histórica, àquela outra Lisboa, a dos mouros sitiados, que integravam uma grande população residente dentro de suas muralhas.

            Essas historias são contadas numa forma peculiar, de longos parágrafos, às vezes de quase uma página, em que as frases se sucedem, reconhecíveis pelas letras maiúsculas após vírgulas e não pontos. Nesses parágrafos estão embutidos os diálogos dos personagens.

            No texto está muito presente a ironia, o humor refinado e o gosto pela língua em que é escrito, cujas características são exploradas, às vezes ludicamente. É uma escrita muito consciente da própria linguagem, que saboreia as peculiaridades do nosso idioma, e faz uso frequente dos ditados populares e  das expressões consagradas.

            Mas o que dá sentido à obra, na minha opinião, é aquela substituição do sim pelo não referida acima. Ao fazer isso o revisor sai de sua passividade, exercida ao longo de muitos anos pelo correto desempenho de suas funções. Ousa intervir no mundo, e assumir as consequências de seu ato.

            Raimundo, significativamente, contentara-se em ser um mero revisor, quando já tinha demonstrado qualidades de escritor em textos antigos, descobertos por Maria Sara nos arquivos da editora. Ele optou por ser apenas revisor para recolher-se à sua passividade, refugiar-se na sua rotina cômoda, e não se comprometer como é exigido dos escritores. Mas Maria Sara, que  compreende bem a sua personalidade (escondida por trás de seu formalismo e retraimento) e a motivação de seu ato, sabe que ele vive na realidade aquém de si mesmo. Sugere assim que ele escreva a sua versão da história do cerco de Lisboa, que contradiz a versão consagrada, projeto que ele enfim abraçará.

            Saramago, ao fazer seu personagem explorar a hipótese-- e se não houvesse a participação dos cruzados, como seria relatado esse evento histórico? – entra no domínio da ficção.  O livro que Raimundo escreve não é, assim, apenas de reconstituição histórica; é também literário, ficcional, o que fica bem evidente, por exemplo, na relação imaginada do soldado Mogueime com Ouroana, a ex-barregã de um cavaleiro cruzado morto em combate, com quem Raimundo e Maria Sara se identificam (a propósito, cabem aqui duas observações: 1) como se vê pela afirmação que acabei de fazer, o livro de Raimundo não exclui totalmente a participação dos cruzados no cerco de Lisboa; 2) a palavra “barregã” é uma das muitas presentes no livro que exigem do leitor contemporâneo e/ou brasileiro a consulta ao dicionário).

            A elaboração desse livro de Raimundo dá a Saramago a oportunidade de levantar questões interessantes sobre a natureza da história e da ficção. Mostra os possíveis caminhos da narrativa, faz seu personagem optar por um deles, possibilita ao leitor participar da criação literária... Proporciona também um distanciamento crítico com relação à historiografia,  haja vista as incertezas que naturalmente envolvem um fato histórico tão remoto quanto aquele sobre o qual se debruça Raimundo, baseado em fontes medievais (crônica de Osberno e depoimento de D.Afonso Henriques— cf. a respeito o interessante ensaio contido em http://www.passenaufrgs.com.br/dicas/literatura/historia-do-cerco-de-lisboa-jose-saramago-resumo.pdf sobre a influência desses textos medievais na escrita do romance).

            O livro de Saramago, ao mostrar um ato aparentemente gratuito do revisor Raimundo Silva (mas que na realidade é simbólico) faz um elogio ao anticonformismo do ser humano na vida social, que está obrigado moralmente a exercer um papel ativo na sociedade em que vive.    

            Ao explorar esse “não” questionador a uma afirmação geralmente aceita pelos historiadores, o livro contém uma alternativa verossímil a ela, ao enveredar pelo terreno da ficção. Isso não é de estranhar pois um pressuposto da obra, como chega a dizer Raimundo Silva logo no início dela, é que a história é também literatura...